Transparência tecnológica


Indo além dos códigos-fonte: a norma tecnológica e as regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena.

 [...] abrir os códigos-fonte é apenas a fase terminal de um processo que,
pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais,
deve começar pela definição da norma que deve se converter em código-fonte.

Considerando-se a presença, na órbita jurídica, da norma tecnológica, em que deve consistir a transparência tecnológica?

Para alguns significa, de uma forma reducionista, disponibilizar para a sociedade os códigos- fonte do software[1]. Apegam-se à recomendação legal[2] de uso preferencial de códigos abertos na elaboração dos sistemas pelo Poder Judiciário.

 Entende-se que isso é útil, mas insuficiente, para a promoção da transparência tecnológica.

Uma política efetiva de transparência tecnológica deveria contemplar ao menos três linhas de ação:

a) regra da automação consciente: todas as pessoas, operadores jurídicos ou não, devem ter ciência do que significa um processo eletrônico, principalmente de que muitas decisões saem das mãos dos juízes (e servidores)  para se instalar num programa de computador;

b) regra da legitimação:  a norma tecnológica deve ser estabelecida por mecanismos abertos, democráticos e institucionalizados;  abrir os códigos-fonte deve ser apenas uma fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que se vai converter em código-fonte;

c) regra da transparência plena: trata-se de explicitar e publicizar, de todas as maneiras possíveis, em linguajar acessível para juristas e para o povo em geral, as decisões tomadas na alínea “b”; a transparência não deve estar voltada para a detecção de erros de codificação do programa, mas para a promoção dos direitos fundamentais. 

As funções tecnológicas de conteúdo jurídico-normativo (que implantem normas tecnológicas no sistema processual),  serão disponibilizadas de forma simples, em linguajar que advogados, servidores, partes e  juízes entendam, sem prejuízo da exibição em linguagem técnica (os chamados códigos-fonte).    

Resumindo, então, pensa-se que, na softwarização,  a norma jurídica, na acepção kelseniana, de “sentido em que se toma o texto normativo”[3], é que deve ser claramente enunciada.

As pessoas devem poder participar dos processos de fixação desse “sentido extraído do texto” (por mecanismos que legitimem sua fixação), as pessoas devem poder saber, com antecedência, que tais decisões serão automatizadas por software, no processo, e, além disso, a descrição da função tecnológica que vincula entradas e saídas, deve, esta sim, estar sempre disponível amplamente para os interessados (publicidade do processo).



[1] Danielle Keats Citron compartilha esse entendimento: “Access to an automated program's source code—the programmer's instructions to the computer—might provide a meaningful way for individuals to challenge an agency's claims and dispel the influence of automation bias.” CITRON, Danielle Keats. Technological…, p.  1284.
[2] “Art. 14.  Os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão usar, preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.” BRASIL. Lei nº 11.419,  de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em: HTTP://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei11419.htm.
[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. São Paulo:Martins Fontes, 1996, p. 6. 

2 comentários:

  1. Parabéns ao grande teórico TAVARES!!! Code is law!

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    1. Caríssimo Desembargador e estudioso José Eduardo,

      É uma honra merecer sua atenção neste blog.

      Pois é... a proposta do trabalho é que a ciência do direito precisa assumir isso (que o código é direito ou lei), validar isso, e passar a construir seus arcabouços contemplando esse novo "tijolo". O que, a meu ver, não tem acontecido. O "Code" está precisando ser visto como direito, dentro do nosso pensar euro-continental e segundo nosso modo de fazer ciência. Como você gosta de dizer, não podemos nos comportar como avestruzes.

      A percepção desse tipo normativo novo - com suas imensas peculiaridades (não interpretação na aplicação, vinculação, prévia-interpretação, deslocamento temporal e espacial das decisões, abandono da ideia güntheriana de situacionalidade no discurso de adequação, generalização/centralização de foro...), tudo isso torna evidente que, ao contrário do que alguns ainda pensam, a tecnologia impacta profundamente a vida do direito e do processo. A ponto de exigir uma evolução da própria ciência.

      Para o "code" ser tratado como "direito", sob a ótica da ciência que, é claro, vai especificar os caminhos para tanto, as reflexões em torno dessa nova espécie normativa pareceram-me muito relevantes.

      Grande abraço.

      Tavares

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