quarta-feira, 12 de junho de 2013

eNorma: o sentido da lei que vai ao computador (IV).

Em mensagem que recebi recentemente de um colega magistrado, Kleber Waki(1), consta a seguinte afirmação:
"Ao mesmo tempo em que vou tentando compreender a expressão [norma tecnológica] como uma forma de interpretação da norma jurídica adotada pelo sistema,"
"Parece-me" -  respondi-lhe - " que tirando a palavra 'forma', e trocando 'norma jurídica' por 'expressão linguística' fica perfeito. O texto ajusta-se exatamente à definição de norma jurídica de Kelsen!".

O texto, portanto, a meu ver,  ficaria assim: "...a norma é a interpretação da expressão linguística (aquela que vem do legislador, a lei!) adotada pelo sistema!"

O primeiro post desta série (o sentido da lei que vai ao computador) trata exatamente dessa questão.
Para entender a eNorma, a primeira coisa a ser feita é mergulhar na acepção de norma juridica que Kelsen nos deixou, a partir da Teoria Pura, embora isso fique bem marcado, também, na sua obra póstuma Teoria Geral das Normas. Contrariando o uso diário e corriqueiro da expressão norma jurídica, Kelsen afirma que o que o legislador nos dá, na lei, é uma "proposição linguística". O sentido com que tal proposição é tomada, depois, para aplicação, é que é a norma jurídica. Os realistas norte-americanos expressavam isso muito bem. É apenas na aplicação que se conhece, efetivamente, o Direito (a norma jurídica), portanto.

No caso da eNorma, isso se transforma de maneira substancial. A proposição linguística inicial, em línguagem natural (português, por exemplo), deve ser transformada numa expressão linguístico-tecnológica (em linguagem de programação de computador).

Isso significa que há uma antecipação daquele momento de aplicação, quando o aplicador interpreta a expressão linguística e  define o sentido em que a tomará para deslindar o caso que se apresenta.
Para elaboração do sistema eletrônico, alguém deve definir o sentido da expressão que será convertido na expressão linguístico-tecnológica.  No linguajar dos técnicos, isso significa definir a "regra de negócio".

É interessante notar que, a partir dessa "tradução" - da linguagem natural para a linguagem tecnológica - entra-se num espaço diferente, onde não mais incide o fenômeno da interpretação para a aplicação - que já foi feita anteriormente - e onde a aplicação está pré-determinada.

As decorrências disso são imensas, portanto: pré-interpretação, pseudo-contextualização na aplicação, norma auto-aplicadora, vinculação absoluta, abandono da não trivialidade por um espaço dominado pela trivialidade (Foerster), nova expressão linguístico-tecnológica. Bem se vê, uma imensidão de consequências que justificam se distinga esse novo tipo normativo.

(1) Kleber Waki é juiz federal do trabalho no Estado de Goiás e um estudioso do processo eletrônico. Em suas reflexões e análises, é sempre muito incisivo no cotejo de prática e teoria, uma postura cada vez mais indispensável para o aprfeiçoamento dos sistemas processuais eletrônicos. Agradeço-lhe a gentileza de autorizar sua citação neste post

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e clausura de operação em Luhmann.


Em post anterior,  parti de Kelsen e sua visão de norma como sentido da "expressão linguística" representativa do ato de vontade do legislador e tentei demonstrar que, nesse trajeto de definição da norma, tem-se:

Legislador -> expressão linguística (norma prima facie ou texto da lei) -> intérprete aplicador -> norma

A ação do intérprete, em geral,  se faz  no momento imediatamente anterior à aplicação propriamente dita, sob a consideração dos fatos que compõem o litígio a resolver.

Ora, no caso da norma tecnológica, há também essa atuação do intérprete para definir o "sentido da lei" que será levado ao sistema eletrônico processual,  o sentido que será convertido em código tecnológico,  em norma tecnológica. Mas ela ocorre num momento diferente, anterior na linha do tempo, em relação ao caso a resolver.

Essa definição de sentido do texto legal (a norma), estabelecido para deslindar as situações jurídicas previstas (imaginadas como de ocorrência possível no futuro)  e que ganha expressão tecnológica, incorporando-se a um sistema eletrônico, é a norma tecnológica. Não há dúvida.   Veja-se que, partindo da expressão lingüística em linguagem natural, apura-se um sentido que é escrito em linguagem tecnológica (algoritmo) - linguagem própria para ser compreendida por uma máquina - e vai determinar o comportamento do sistema eletrônico quando se apresentar exatamente uma daquelas situações antevistas pelo intérprete.

Define-se, hermeneuticamente, um sentido (norma) que se transforma num ente “autoaplicador”, num programa de computador que, automaticamente, vai se autoaplicar. Desse simples entendimento surge uma miríade de conseqüências teóricas e práticas.

Luhmann, em seus estudos do Direito à luz da teoria dos sistemas, chama a atenção para a característica sistêmica do fechamento operativo (clausura de operação).  Da visão antiga dos sistemas abertos (entrada-> processamento -> saída),  a teoria dos sistemas, para dar um passo adiante e absorver as noções de auto-organização e de autopoiese (que Luhmann distingue estritamente), teve de introduzir o conceito de fechamento operativo, pelo qual, para dizer de maneira muito rápida e simplificada, estabelece-se que um sistema, de fato, manifesta-se em sua operação e não por suas entradas e saídas.  Só se conhece um sistema, efetivamente, imergindo em sua malha operativa.

O conceito de trivialidade é sempre lembrado por Luhmann, quando fala de clausura de operação,  para distinguir os sistemas  entre triviais e não triviais (Foerster). Nos sistemas não triviais, aos mesmos inputs podem corresponder diferentes outputs - ou até  nenhum output - porque o estado interior do sistema tem influência sobre seu  funcionamento.  Ou seja, o conceito de clausura de operação permitiu avançar da teoria dos sistemas abertos, mas triviais,  (Bertalanfy) para a teoria dos sistemas fechados apenas operacionalmente, porque não condicionáveis pelas entradas (não triviais). O conceito de clausura de operação liberou a teoria dos sistemas para estabelecer os balizamentos aplicáveis aos sistemas sociais, onde o meio não condiciona, causalmente, o comportamento sistêmico. 

O Direito, por exemplo, embora seja operacionalmente fechado, caracteriza-se pela não trivialidade. E, sob tais novas luzes,  pode receber o influxo teórico da teoria geral dos sistemas.

Pode-se estabelecer, é verdade, sob medidas de probabilidade, uma expectativa para o output. Mas não se pode assegurar trivialmente um resultado, porque o sistema pode responder de forma diferente aos mesmos inputs. Lógicas modais - e notadamente a deôntica e seus paradoxos - prestam-se à teorização de tais comportamentos.

Pois bem... 

O que acontece quando o intérprete define o sentido da lei  - que é a norma - para o programador codificar no programa do sistema processual?

O Direito abandona seu caráter não trivial e trivializa-se completamente.  A norma, que humanamente aplicada é sempre não trivial (cada juiz uma sentença!), transforma-se numa máquina trivial, numa função que, para as mesmas entradas, repete consistentemente os mesmos resultados. 

Por ser uma norma autoaplicadora, o código tecnológico tem seus caminhos fixamente definidos (mesmo que sejam muitos os previstos) e exige entradas exatamente como as previstas pelo programador. Qualquer alteração nas entradas (que fuja às variações previstas = expectativas!) não encontrará escoamento pelas estruturas rígidas do código. Por outro lado, se as entradas são oferecidas de forma correta, os caminhos  previamente traçados (programados) serão percorridos até o resultado previsto. Com precisão. 

Essa é uma forma, sob ótica sistêmica, de demonstrar que a norma tecnológica (eNorma) é diferente, porque "desumanizada" na aplicação. Enquanto a norma prima facie é apenas um "apontar de caminhos" que o intérprete humano pode ou não seguir, dependendo das circunstâncias relevantes que o caso concreto apresentar, a norma tecnológica é um conjunto de caminhos pré-fixados.