quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Bacenjud e norma tecnológica (eNorma)

Há uma pergunta que aparece, sempre, após algumas informações dadas a respeito da ideia de norma tecnológica (eNorma):

-Poderia dar um exemplo?

Como tenho dito, a norma tecnológica (eNorma) é filha da automação e, por isso mesmo, precisa ser olhada como uma nova categoria jurídica. Ela está instalada  num sistema eletrônico, seja ele qual for, e se autoaplica.  Na verdade, em geral se trata de uma norma existente, textual ou não, de qualquer hierarquia,  que é "traduzida"  num comando tecnológico e que, quando o sistema opera, repito, se autoaplica.  

Embora a experiência do Bacenjud seja riquíssima para explorar inúmeros aspectos do fenômeno jurídico-sistêmico eletrônico (automação, interpenetração, extraoperabilidade/interoperabilidade, clausura operativa, abertura informacional, sistemas abertos e fechados), quero pinçar um aspecto para realçar a norma tecnológica e tentar melhorar sua visibilidade. 

Desde o início de operação,  o Bacenjud mereceu imensos encômios. Embora a conexão dos sistemas se fizesse mecanicamente, as buscas e apreensões de numerários, nas contas, ganhou automaticidade. O regramento legal-processual, atinente à busca da efetividade do processo executivo, foi "programado" - exprimiu-se em códigos-fontes, ou seja, ganhou sua expressão tecnológica, e passou a integrar - estar incorporado - em algoritmos dos sistemas do Banco Central.  Dado o comando e demais informações pelo juiz (disparo mecânico da busca), o sistema percorria suas bases de dados e, satisfeitas as condições programadas, promovia as apreensões. 

Pois bem... quem implementou o algoritmo de busca e apreensão, na época (aquele que deu concretude à norma tecnológica, que a programou!), esqueceu  de um detalhe e causou muitos problemas, incômodos e, mesmo, prejuízos. 
A função foi projetada, escrita e operacionalizada (e funcionou assim por um bom tempo!) para apreender a integralidade dos valores disponíveis nas contas, independentemente dos valores buscados. Mesmo que se buscassem R$10.000,00, por exemplo, todo o valor disponível na conta era tornado indisponível, ainda que lá houvesse R$1.000.000,00.   

Alguns princípios básicos do processo e da execução foram  ignorados e muitos advogados trabalharam para ajeitar as coisas.  A apreensão era legal, sem dúvida, e os anseios gerais de efetividade do processo ganharam uma ferramenta maravilhosa  para promovê-la. Mas a expressão da ordem, em termos tecnológicos, avançava as cancelas do legal e do justo.  Uma coisa era a lei. Outra, um pouco alterada, para pior, era a sua expressão tecnológica. A norma tecnológica, no instante em que se diferenciou para ganhar expressão tecnológica, o fez de forma distorcida, o que evidencia a pré-interpretação e renova a lição de Kelsen sobre a distinção essencial entre norma e texto legal.  

 Não podemos esquecer da constatação de Danielle Keats Citron, no estudo sobre as rotinas automatizadas das agências reguladoras norteamericanas: “the  computer  programmers  made  new  policy  by  encoding  rules  that  distorted  or  violated established policy” (citada em meu artigo - ver página "Artigos", no menu à direita: "os programadores de computador estabeleceram nova política codificando regras que distorceram ou violaram política estabelecida"). 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Morin, programa, pré-interpretação e pseudo-contextualização da norma tecnológica (eNorma)

Quem não conhece Edgar Morin e a lucidez de suas análises? É, sem duvida, uma das cabeças bem-feitas do século XX.

Falando num contexto um pouco diferente, em que confronta estratégias e programas,  Morin diz: "é que um programa já está determinado antes mesmo da caminhada, e o caminho é uma corrente que vai no sentido favorável. Vamos avaliar a situação: será que podemos mudar o caminho? Aparentemente não."  A citação é de Aires José Rover (Morin).

Chamo a atenção para o trecho destacado, em que o pensador caracteriza um programa. De fato, qualquer programa, inclusive aquele de computador,  que incorpora uma norma tecnológica (eNorma), já está determinado, mesmo, antes da caminhada (operação). No linguajar sistêmico luhmanniano, a estrutura de expectativas é previamente definida e por ela transitará o fluxo operativo (clausura operacional). 

Esse traço dos programas confere à norma tecnológica algumas de suas características diferenciadoras: a pré-interpretação e a pseudo-contextualização, por exemplo. 

Por pré-interpretação,  entendo o fenômeno de fixação/seleção do sentido normativo a ser codificado num momento anterior,  bem anterior mesmo, ao da efetiva aplicação. O que é uma exigência da afirmação de Morin: para já estar determinado antes mesmo da caminhada!

Por pseudo-contextualização, designo o fenômeno da inexistência de um efetivo esforço de contextualização, uma vez que ele apenas se esboça na atividade típica da "programação", quando o programador procura antecipar-se, visionariamente, às possibilidades de eventos para os quais faz a determinação das soluções a serem incrustadas no algoritmo (programa). Embora esse trabalho, em geral, tenha um nível de especificação superior ao do legislador (quando gera a norma textual), ainda assim o programador trabalha num nível de abstração que não se compadece com uma efetiva atividade de contextualização.  É por isso que, no linguajar de Morin, de novo, os caminhos  já estão determinados antes da caminhada. 

Portanto, ao contrário das normas com as quais estamos habituados a operar o Direito, a norma tecnológica aplica-se automaticamente ao caso em exame,  sem um exercício de interpretação do aplicador (que é um agente automatizado) e sem uma real contextualização. 

Morin, com sua afirmação, deixa evidente, também,  o caráter vinculante absoluto da norma tecnológica. Ou não? 

domingo, 23 de dezembro de 2012

Girolamo Cardano, matemática, sutileza e norma tecnológica (eNorma)

Em 1501, em Roma, nasceu Girolamo Cardano, um pensador típico daquela época: filósofo, matemático e médico. Como matemático, Cardano dedicou-se, entre outras coisas, ao estudo das equações de 3° grau, onde se deparava, no curso da solução,  com raízes quadradas de números negativos.   Todo o pensamento anterior, antigo e medieval,  simplesmente desconsiderava tais números. Não havia como encontrar a raiz quadrada de -4 no cenário matemático de então. Descartes continuou pensando assim e nessa esteira vão rodar, nos próximos séculos,  nomes como Leibniz e Euler.
Cardano, ao contrário,  anteviu que tais números tinham um significado "diferente e sutil", o que só foi reconhecido no século XIX, por Gauss, considerado o maior matemático de todos os tempos. Nasceram os números complexos, que levam aos fractais, aos conjuntos de Julia e à teoria do caos. Cardano foi desmentido, apenas, na questão da sutilidade.

norma tecnológica (eNorma) tem, também, sutilezas muito significativas para o Direito, pois são as sutilezas da norma tecnológica que tornam o Direito com tecnologia tão diferente.

O Direito do real com o virtual - a realidade estendida em que já vivemos - exige essa nova categoria jurídico-científica para ser explicado e descrito. Ela é uma categoria nova, pois se distingue, em aspectos capitais, da norma (e suas várias espécies) com a qual os teóricos do Direito, desde Kelsen, têm abordado o fenômeno jurídico. Ela é norma, sem dúvida. Mas a questão da autoaplicação, da pré-interpretação, da vinculatividade absoluta, da aplicação pseudocontextual, das fontes e da expressão, entre outras, evidenciam a necessidade de contemplá-la como uma nova espécie normativa.

Temos vivido sob o impacto desse ente e temos experimentado, com crueza, o embate prático num mundo jurídico amplificado e diferente. No entanto, do ponto de vista teórico, ha um imenso esforço a ser feito para caracterizar a norma tecnológica (eNorma) colocá-la sob luzes adequadas e enquadrá-la num esboço científico consistente para o Direito atual, o Direito com as TICs, o Direito com automação, o Direito com agentes automatizados.



terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Rover, Krammes, agente automatizado e norma tecnológica

Aires José Rover, na apresentação de Workflow em processos judiciais eletrônicos (1) diz que "o processo eletrônico é a revolução que já é uma realidade."  Na verdade, será a realidade única processual em poucos anos. Prevê Rover, ainda, que " [...] passaremos por momentos de estupefação diante das suas possibilidades de solução de velhos problemas e de muita preocupação em razão dos caminhos e métodos mal sinalizados."

Após lembrar dos embaraços da Justiça para dar conta "em tempo" de seus misteres, o professor da UFSC  vislumbra uma solução no " [...] aumento da rapidez dos fluxos mecanicistas de informação jurídica", o que levaria a uma otimização qualitativa " [...] daqueles momentos em que o jurista precise usar sua principal ferramenta de trabalho, a inteligência". Assim,  desemboca na necessidade de integrar ferramentas ao sistema processual para dar o máximo de "apoio à decisão utilizando-se inteligência artificial".  Isso significa fazer uma " [...] reengenharia do processo judicial, fundamental para que sua automação tenha sucesso absoluto."

Ou seja, está implícito, na ideia de processo eletrônico, um fenômeno forte de automação. Não é a digitalização de documentos e o desaparecimento das prateleiras que pode justificar o avanço para o processo eletrônico. É, sim, a automação, em níveis máximos, para apoiar o decisor.

A partir do fim da apresentação da obra, a palavra automação é abundante em todo o texto do livro  e aparece em praticamente todas as páginas. Não é por acaso que, nas páginas 35 e seguintes, no final do capítulo 1, os atos processuais são examinados, conforme provenham do juiz, das partes, dos auxiliares da Justiça e de terceiros.  Afinal, eles são o alvo da automação.

Saindo do Direito e indo à tecnologia, numa exposição da ferramenta workflow,  que ocupa todo o capítulo 2, Krammes atrai a definição dessa tecnologia (2) dada pela  Workflow Management Coalition: "A automação de um processo de negócio, no todo ou em parte, no qual os documentos , informações ou tarefas são passados de um participante para outro de acordo com uma série de regras determinadas." [sem grifo no original]

E, falando dos componentes do workflow, Krammes  diz que "para a operacionalização do workflow o foco não está nos cargos, mas nas responsabilidades que serão assumidas por pessoa ou agente automatizado que faz parte do processo." [sem grifo no original] (3)

Pessoa ou "agente automatizado"? Opa!

O que é um agente automatizado? Sem dúvida, é um software, um programa de computador. E de que se constitui esse programa? De normas ou regras tecnológicas. Um agente automatizado é um aplicador automático de regras processuais, ou seja, o agente automatizado é um amálgama de regramento processual autoaplicador.

E, então, fica claro que as regras que constituem tal agente são diferenciadas - são as normas tecnológicas - pois representam uma interpretação da norma textual,  interpretação esta escolhida por alguém (algum órgão, algum comitê, algum programador?!?) para ser aplicada pelo agente automatizado (se autoaplicar), uniformemente, aos feitos submetidos ao sistema processual.

Um agente automatizado é, na verdade, uma norma tecnológica (ou várias) em ação, que se autoaplica a um usuário do sistema processual.

(1) ROVER, Aires José, na apresentação de  KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos judiciais eletrônicos. São Paulo:LTr, 2010, p. 9-11. 
(2) KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos..., p. 45-46.
(3) KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos..., p. 47. 



terça-feira, 11 de dezembro de 2012

OAB deve dar mais atenção à norma tecnológica!

Quando o recurso é rejeitado pelo sistema, ou o login negado, ou a assinatura conferida, ou a contagem do prazo feita de forma inadequada, ou o usuário que jura que se registrou não é identificado, em todas essas ocasiões, não é com um humano que o usuário está interagindo. É com uma norma tecnológica. O interlocutor do advogado é o sistema processual.

Num post, há alguns dias, mencionei os advogados como os operadores mais diretamente impactados pela incorporação das tecnologias no processo.

De fato, enquanto se pode dizer que quase nada foi incluído nos sistemas processuais para auxiliar os juízes, uma parcela muito substancial das funcionalidades está voltada diretamente ao mister do advogado. É por isso que eles, hoje em dia, peticionam de seus escritórios, fazem atos à distância, acompanham os processos de onde estiverem etc. 

Tudo isso, quando se funda em permissão legal, é viabilizado por esse ente novo da ciência jurídica que vimos denominando norma tecnológica. O sistema processual, com o qual o advogado interage no âmbito dos processos eletrônicos, é um amontoado de código (linguagem dos computadores). Parte desse código contém instruções para fazer o computador funcionar, apenas. A outra parte incorpora uma versão tecnológica da lei processual.  Ou seja, aquela lei processual com a qual o advogado está familiarizado precisa ganhar expressão em linguagem específica, de computador, para se construir um sistema processual. E, aí, o computador realiza atos processuais que antes eram efetuados por humanos. 

Contagem de prazo, por exemplo. De alguma maneira, faz-se uma função, dentro de um programa, para proceder a essa contagem e certificar o evento de transcurso do prazo. O servidor incumbido da tarefa é substituído por essa função do programa. A contagem ganha automaticidade.  Se a função tem o comportamento preconizado na lei é uma questão muito relevante para os advogados.   

A partir desse exemplo simples, é possível imaginar quanto da lei processual ganha expressão tecnológica para viabilizar um sistema processual. Quanto mais avançado o sistema, mais lei ele vai incorporando, o que significa, também, que mais ele se vai automatizando.

Todas essas normas, que operam no sistema e tornam uma imensidão de tarefas processuais automáticas, são normas tecnológicas. Outro exemplo interessante, como exercício de visibilidade,  é a função de automação da distribuição dos feitos em fóruns com mais de uma vara.  Uma coisa é falar, abstratamente, em ter algum mecanismo automático de distribuição. Outra, bem diferente, é implementá-lo. Nessa fase de implementação, muita coisa deve e pode ser feita, além de "tentar atender ao disposto na lei".   

A norma tecnológica nasce exatamente no momento em que a lei é transformada nesse programa do sistema processual. Os mais apressados dizem que isso é apenas uma tradução. Ora, mesmo numa tradução entre línguas humanas, há um forte teor de "transformação de sentido" envolvido.

O que dizer, então, da  transformação do texto natural da lei num texto codificado em linguagem de computador (código-fonte)? O potencial de transformação se multiplica.  Ao fato, em si, de ter de estabelecer um entendimento da norma legal-textual (prima facie) - interpretação -  para exprimir em linguagem técnica, soma-se um outro fato extremamente relevante: a nova norma (codificada) não se destinará à leitura e interpretação de um outro humano. Ela ganhará vida própria, no seio do sistema processual, e se autoaplicará no decorrer da operação do sistema.

Quando o recurso é rejeitado pelo sistema, ou o login negado, ou a assinatura conferida, ou a contagem do prazo feita de forma inadequada, ou o usuário que jura que se registrou não é identificado, em todas essas ocasiões, não é com um humano que o usuário está interagindo. É com uma norma tecnológica. O interlocutor do advogado é o sistema processual.

Por isso, tendo em vista as constantes e seguidas reclamações dos advogados a respeito de problemas dos sistemas processuais, é interessante que a OAB reclame espaço e tenha uma participação efetiva no controle de geração dessas versões legais tecnológicas (normas tecnológicas).  

Buscar a transparência dessas expressões tecnológicas das leis parece, inclusive, um dever de uma instituição como a OAB.


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Bobbio, coatividade do direito e a norma tecnológica

No último post, tentei, pela via filosófica (Godofredo Telles Jr), aproximar o jurídico e o tecnológico (demonstrar o caráter híbrido da norma tecnológica) e  terminei dizendo que os juristas " [...] precisam entender o que significa dar poder jurídico a um ente normativo de características tecnológicas, destituído de tantas marcas peculiares do jurídico  [...] " (um agente automatizado). Num post, a abordagem é, ou deveria ser, sempre, rápida e objetiva. E isso complica um pouco a exposição.

Nas suas lições de filosofia do direito (1), no item 39 (p. 155 e seguintes),  Bobbio fala da formulação da teoria da coação, que ele qualifica de moderna (Kelsen e Ross), contrapondo à doutrina clássica, para a qual "o direito é um conjunto de normas que se fazem valer coativamente". E acrescenta que a nova concepção vê o direito como o conjunto de normas "que regulam o uso da força coativa".  Nessa reformulação de visão,  realça o papel de Ross,  dizendo-o "o autor que mais clara e conscientemente põe o dedo na ferida [...] " para evidenciar o significado novo que a teoria da coação assumiu. 

Segundo essa concepção, continua Bobbio, "o direito surge quando cessa [...] o exercício indiscriminado da força individual e se estabelecem as modalidades de exercício da força  [...]: quem, quando, como, quanto". 

Quem: estabelece-se o monopólio do uso da força pelo Estado e seus órgãos "e o exercício da força se qualifica como lícito ou ilícito segundo provenha do grupo monopolizador ou de outros sujeitos." (p. 158) [grifo meu].  
Quando:  a aplicação da norma somente se pode dar quando ocorrem as circunstâncias previstas pela lei;
Como: " as normas processuais regulam precisamente a modalidade através da qual se julga a aplicação da coação [...] ;
Quanto: " [...] isto tem o objetivo de reduzir ao mínimo o exercício arbitrário do poder [...] ", o que, em visões do pós-positivismo, traduz-se em promover a contextualização da norma, como condição de sua imparcialidade e legítima aplicação. 

Ora, considerando-se o caráter de autoaplicação das normas tecnológicas, é possível suscitar reflexões em relação às quatro modalidades de aplicação coativa do comando normativo. 

Em relação ao quem e ao aspecto de licitude/ilicitude correlato, é-se obrigado a considerar que deveria haver mecanismos transparentes para garantir que a aplicação, que é autoaplicação,  provenha de instâncias legitimadas para fixar os conteúdos codificados. O "auto", na realidade, tem um sentido oculto de "externalização" do quem  com o qual não se está habituado no processo (sabe-se, sempre, quem decidiu motivadamente!). 

Em relação ao quando,  práticas transparentes permitirão determinar que o código que se autoaplica contém, efetivamente, as condições legalmente estipuladas, numa interpretação emanada de órgãos legitimados para forjar a versão tecnológica do comando legal-textual. Além disso, parece que caberiam aqui, ainda, profundas reflexões  a partir das críticas ao dogma da completude do direito (2),  com o qual se trabalha, implicitamente, na automação. 

O como mereceria comentários longos, partindo de um entendimento profundo da autoaplicação (giro autopoiético do sistema) e da presença dos mecanismos de automação.

E o quanto, definitivamente, requer muitas considerações,  pois a ideia de contextualização (consideração das perístases da situação concreta examinada) parece que se perde no caminho. O trabalho de interpretação do texto e de determinação do conteúdo do comando tecnológico ocorre num nível de abstração equiparável ao do legislador. 

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(1) BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito.São Paulo:Ícone, 1995. 239p. 
(2) BOBBIO, Norberto. O positivismo...,  p. 207 e seguintes. Também: BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília:Ed. Unb, 1999. p. 119.






sábado, 8 de dezembro de 2012

O caráter interdisciplinar da norma tecnológica: Godofredo Telles Jr, Maria Helena Diniz, tecnólogos e OOP

A carga naturalmente interdisciplinar desse novo ente da ciência jurídica - a norma tecnológica -  é um desafio. Falar da norma tecnológica significa transpor barreiras, nas duas direções: do jurídico para o tecnológico, do tecnológico para o jurídico. E aí está um desafio muito peculiar: teóricos de ambos os lados devem entregar-se a teorizações em âmbitos nos quais não se sentem muito à vontade.

Contemplar a norma tecnológica, na especificidade que a caracteriza como um novo ente científico, demanda um caminhar no sentido contrário ao proposto por Godofredo Telles Jr. (1) para detectar a essência da norma jurídica, quando deságua no entendimento, de fortíssimo teor kelseniano, ainda, de que os caracteres essenciais da norma jurídica são a "imperatividade e o autorizamento".   Nesse terreno, os juristas nadam de braçada e os tecnólogos costumam penar. A contrafaticidade, que caracteriza a norma jurídica e que torna o jurídico tão peculiar, é um desafio quase incompreensível para o logicismo formalista dos tecnólogos e de sua ciência.

Falando para os tecnólogos, pode-se traduzir o esforço de Godofredo Telles numa linguagem da programação orientada por objetos, embora tudo isso, no mundo deles, seja quase banal. Banal, quero dizer,  no sentido do que ele queria descobrir.

Colocando-se as coisas em termos de classe/objeto (linguagem muito atual dos tecnólogos e da programação orientada por objetos), o que o filósofo Godofredo Telles Jr.  fez, com grande esforço teórico,   foi chamar a função que indica a classe abstrata  (abstract class)  de que  se partiu, tecnologicamente, para criar, por herança, a classe estendida (extended class). Os juristas entenderam? Muitos tenho certeza de que não. Aliás, os juristas ficariam fascinados com o embasamento teórico-filosófico do instrumental  dos tecnólogos.

Assim como os tecnólogos sabem que a classe abstrata não pode ser instanciada - não pode ter vida real como objeto (esse real é no mundo virtual, num programa ou software!) -  Godofredo Telles sabia que, embora a pura essência da norma jurídica estivesse presente em todas as normas reais existentes, ela não podia ter existência em sua formulação pura, sem que fosse estendida. Ou seja, também no Direito, a classe abstrata não pode ser instanciada. Somente uma classe estendida - uma espécie normativa específica como princípio (que Godofredo Telles ainda não contempla adequadamente), regra ... - pode existir efetivamente. Agora, temos uma espécie de norma nova que somente se explica com o amálgama de saberes desses dois mundos.

A norma jurídica é um ente jurídico-tecnológico - e os tecnólogos precisam entender o que significa isso, ou seja, o que significa pôr em funcionamento um comando tecnológico que tem a força imperativa do jurídico - e os juristas, por seu turno, precisam entender o que significa dar poder jurídico a um ente normativo de características tecnológicas, destituído de tantas marcas peculiares do jurídico (caráter contrafático,  por exemplo, formação/validez, interpretação, aplicação contextualizada...).
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(1) Pode ser pela via de Conceito de norma jurídica como problema de essência, de DINIZ, Maria Helena. 2 ed. SãoPaulo:Saraiva, 1996.  Aliás, esta obra merecerá um post específico pois a autora, nela, faz um exercício interessante e rico, mas exatamente em sentido oposto ao que parece ser preciso fazer para tratar da norma tecnológica (em vez de buscar a essência, buscar o acidental, o diferenciador, o que caracteriza a espécie, não o gênero).





sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Norma tecnológica (eNorma) diz respeito a processo, necessariamente?


Por certo que não!  

É verdade que temos, atualmente, no Brasil, em decorrência do grande impulso à automação do processo, uma visibilidade maior de normas tecnológicas de conteúdo procedimental. 

Mas, em outros âmbitos e em outros países, há grande incidência de normas tecnológicas de fundo (no plano da adjudicação de direitos, mesmo).  Veja-se, a respeito,  os trabalhos de Danielle Keats Citron, nos EUA,  que cito em meu artigo -  página Artigos sobre norma tecnológica, ao lado direito deste post.

No Brasil, na UFPR, há um grupo de estudiosos falando amplamente em automatizar as decisões (ir ao mérito!).  Trata-se de um cenário de esforço teórico, ainda, é verdade. Mas, pela ótica da tecnologia - só pela ótica da tecnologia, repito! - não se trata de um cenário distante. Muito pelo contrário. Os óbices a esse avanço, certamente, deverão vir da seara jurídica.  Vem aí um belo embate entre tecnologia e Direito (princípio da dupla instrumentalidade). 



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Transparência tecnológica: uma exigência da softwarização

Em 2011, no Brasil, a lei 12.527 tratou do acesso à informação, sob discurso estribado fortemente na ideia de transparência. Na realidade, entretanto, acrescentou pouco à disciplina processual, toda ela permeada, desde a base, pela publicidade.

É estranho que o legislador, em tão extenso e minucioso documento, não se tenha ocupado das novas tecnologias da informação (TIs), colocando sua incorporação aos mecanismos de adjudicação e aplicação do Direito,  clara e expressamente, sob as luzes da transparência. Nesse especial aspecto, a lei poderia ter efetivamente inovado para o processo, que está sendo invadido por essas tecnologias, mas não o fez.

A softwarização do processo já evidencia, a toda prova, que o software assume papéis antes entregues ao prudente arbítrio do juiz, além de aos servidores. São normas que, em expressão tecnológica, se autoaplicam e dão automaticidade aos sistemas, são as normas tecnológicas(2).

A tecnologia não é um mal a ser espancado. Ela é um bem a ser controlado. E a transparência é um instrumento efetivo para esse controle.

 [...] o software é um invisível permitido, extremamente ativo e que age diretamente, não pela via de outros operadores
E tem de ser assim mesmo, para o bem do processo. Não há porque não ser, embora isso tenha de estar transparente em moldes adequados.
Os jurisdicionados têm direito à transparência tecnológica, não apenas informacional.

Alguns casos já vividos são notórios, como o famoso e recente caso em que um recurso foi considerado intempestivo pelo sistema processual (o software) porque o horário do sistema era o de Brasília e o recurso vinha de um Estado com outra hora.  Outros são corriqueiros, como as muito comentadas rejeições de peças porque não se atendem limites de tamanho que “alguém” incluiu no software por conveniências de ordem administrativa ou financeira. Aliás, numa manobra em que direitos fundamentais são desprezados e prevalecem as tais conveniências. Quem não lembra do Bacenjud, no início, e sua voracidade descontrolada? Isso merece um post à parte!

Na verdade, os processos sempre tiveram atores visíveis e invisíveis. Em legitimação pelo procedimento, da virada dos anos 60 para os 70, ao tratar da autonomia do sistema processual,  Niklas Luhmann[1] já evidenciava a preocupação com os atores invisíveis, presentes no processo via papéis externos dos operadores.   Mas o software é um invisível permitido, extremamente ativo e que age diretamente, não pela via de outros operadores.

Colocá-lo numa zona de luz, sob os olhares de todos, parece uma exigência necessária para desmistificá-lo e para dar validade ao amplo movimento de incorporação das novas tecnologias pelo Direito.



[1] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, p. 61-64.  
[2] Sobre a noção de "agente automatizado", nos contornos da tecnologia do workflow, ver o capítulo 2 de  KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos judiciais eletrônicos. São Paulo:LTr, 2010.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Krammes compartilha ideias sobre norma tecnológica.


Nos últimos dias, tive oportunidade de trocar ideias com  Alexandre Golin Krammes, autor da excelente obra Workflow em Processos Judiciais Eletrônicos (1), prefaciada pelo professor Aires José Rover. Krammes é graduado em Direito pela UFSC e mestre em Gestão do Conhecimento pela mesma instituição, possuindo conhecimento profundo e atualizado de análise de sistemas voltados para a Justiça. Uma combinação valiosa de saberes para o novo cenário do processo no Brasil. 

Após rápido fornecimento de informações a respeito dos objetivos deste blog, Krammes manifestou-se interessado em buscar um elo entre os aspectos teóricos suscitados e algum ponto de sua larga experiência prática, o que ele chamou de "uma molécula da questão", para aprofundar em termos pragmáticos. 

"Há certos caminhos que o processo eletrônico assume e que deveriam ter um respaldo maior, sem duvida, em discussões dos envolvidos", disse-me ele. Esse é precisamente um dos aspectos que se busca ao teorizar a norma tecnológica, para perceber sua força funcional nos sistemas processuais.  

Apaixonado pela tecnologia da informação e da comunicação, afeito ao meio tecnológico e após longos anos de envolvimento direto no desenvolvimento de sistemas, o autor destacou, ainda, que " é preciso despertar a noção de que o processo eletrônico não é simples mudança do tipo de mídia, e tal constatação precisa de estudos avançados para que seja garantida a evolução com manutenção de direitos secularmente consagrados.

(1) KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos judiciais eletrônicos. São Paulo:LTr, 2010. 117p.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Norma tecnológica ou norma virtual? eNorma?

Essa nova categoria científica do Direito e da ciência processual merece um nome. 

Que se trata de norma, no sentido de "gênero", conforme  proposta de Dworkin, aprofundada por Alexy etc., parece que não há divergência. Agora, a escolha de um qualificador que diga respeito à espécie, para a caracterizar como um novo ente científico, pode ensejar controvérsias.  

Seria melhor, por exemplo,  utilizar a denominação "norma virtual", em lugar de norma tecnológica?

Ouso pensar que não. Explico:

O termo virtual é polissêmico, equívoco, terçado por juristas de um jeito e por tecnólogos de outro. Em tecnologia,  há ao menos 8 sentidos explicitados, conforme trabalho indicado na nota 7 de meu artigo Processo eletrônico no novo cpc: é preciso virtualizar o virtual (https://docs.google.com/open?id=0B81pFflVFMJFTFVmb3I3RVc3cGc)
  
Sendo assim, ao falar em norma virtual, entra-se diretamente nesse emaranhado de equivocidade. Por isso, pareceu-me mais salutar fugir disso e preferi adotar a denominação norma tecnológica.  Embora seja necessário estabelecer um conceito operacional, é verdade,  conta-se com a vantagem de não haver pré-conceitos  atrapalhando os pensares. 

Além do mais, como se trata - segundo penso - de uma categoria jurídica nova (filha da automação e ente emergente do mundo jurídico-tecnológico), tem-se mesmo de caminhar para o estabelecimento de um conceito. 

Não custa repisar que ela se exprime em linguagem não natural, em linguagem tecnológica (códigos fonte e objeto) sendo, este, talvez, um traço muito peculiar, apto para isolá-la, como espécie, no universo das normas.


Processo eletrônico, iPad, PJe-JT, norma tecnológica e os advogados

Sempre que se trata de processo e de regramento processual, os advogados situam-se como "grandes destinatários" de tudo que se produz, pois estão na "linha de fogo". Por isso, podem ser vistos como os grandes beneficiários do processo eletrônico, até agora. E, provavelmente, os mais impactados pelas novidades tecnológicas.

Em 1/12/12, no meu blog Estudos de Direito, publiquei o post em que noticiava a existência de um browser (navegador), disponível para o iPad, capaz de abrir arquivos em flash.  Segundo o Juiz Luiz Carlos Roveda, isso permitiria quebrar as restrições do Safari, que não entra sequer na consulta pública (sem certificação digital) do PJe-JT (novo sistema de processo eletrônico da Justiça do Trabalho). [ http://stavarespereira.blogspot.com.br/2012/12/processo-eletronico-e-ipad-novo.html]

Numa primeira mirada, trata-se apenas de uma novidade no âmbito da tecnologia. Será?

Na verdade, pensando-se com mais vagar, parece ficar claro que a norma tecnológica posta em operação (o sistema processual a incorporou desta forma) impõe meios específicos pelos quais os atos processuais podem ser cumpridos. Ou não?  O exercício de direitos processuais fundamentais está atrelado (subordinado) ao cumprimento de determinadas regras que, na sua versão tecnológica, são diferentes da norma prima facie (textual).  

Explico melhor: o CPC prevê a possibilidade de um recurso, por exemplo, num determinado prazo. Sempre tivemos "formas" para o exercício desse direito, definidas em lei, além da delimitação de conteúdos: requisitos intrínsecos e extrínsecos. E, portanto, não há novidade na existência de condições para exercitar o direito de recorrer. Normas e princípios combinam-se, de forma harmônica, na construção do "mecanismo recursal".

Com o sistema processual eletrônico, isso se transformou.  Somente a via "eletrônica"  passou a ser aceita. Portanto, na passagem do processo em papel para o "processo eletrônico",  novos condicionantes do exercício do direito de recorrer apareceram, portanto. O mais evidente, e necessário, é o uso de meios eletrônicos. 

Está errado isso? Parece que a resposta tende a ser um veemente não,  embora possa haver muitos questionamentos a respeito, por exemplo, da velocidade da implementação das exigências (imposição de formas em detrimento da substância), da inexistência de infraestrutura uniforme, em todo o território, para o exercício de direito fundamental (isonomia) etc. Essa discussão, entretanto, não atine diretamente à expressão tecnológica das normas postas (às normas tecnológicas). Não são inconvenientes que defluem da maneira como se escreveram (codificaram tecnologicamente) as normas legais do regramento recursal. 

Mas, indo ao ponto

A lei previu a evolução, claramente, para o uso de meios eletrônicos. Uma leitura da lei 11.419/2006 permite vê-la como uma ampla autorização para tal transformação processual. Isso se espraia ao longo do texto legal, por inúmeros dispositivos. O art. 10 é um excelente exemplo. 

No entanto, o arcabouço normativo da lei 11.419/2006, ao ganhar expressão tecnológica (ser escrito em linguagem técnica e transformar-se num sistema),  parece ter avançado em relação às restrições/previsões legais.  

Esta norma exigiu, para sua implementação, "decisões e escolhas". Foram decisões e escolhas que nortearam, e vem norteando, vultuosos investimentos públicos e, só por isso, são importantes. Mas isso implicou, também,  escolha de certas  "expressões tecnológicas" (digamos assim!) e não de outras.  O iPAD, por exemplo, está banido desse caminho. Nem gosto dele, mas trata-se de um bom exemplo para chamar a atenção para a categoria científica norma tecnológica.  

Essas e outras decisões, tomadas ao longo da construção dos sistemas eletrônicos processuais,  se incorporam ao arcabouço legal processual, transformando-o. No momento em que tal arcabouço ganha  expressão tecnológica, ou seja, exprime-se em normas tecnológicas, não há uma inócua "tradução" normativa. Muito pelo contrário! 

A norma tecnológica é diferenciada, única, tem sua própria expressão e seu modo de operação. Por isso é uma categoria científica nova, que está a exigir teorização e normatização. 

Não se trata, aqui, de ser contra ou a favor de nada, mas de destacar que, quando um regramento legal se exprime tecnologicamente, ele concretiza a previsão legal de certo modo, ou seja, a norma tecnológica distingue-se, em extensão e compreensão, da norma legal textual cuja implementação ela busca.

Os advogados, com  seus iPads, devem ter muitos outros exemplos similares.