domingo, 28 de abril de 2013

A teoria geral do processo para um mundo só de processo eletrônico, com muita norma tecnológica.


Vivemos um momento especial em que contribuições importantes, de várias disciplinas, deverão ser amalgamadas numa teoria consistente sobre o processo operado com instrumentos proporcionados pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs).

A  TGP está pressionada e parece ser o porto de chegada dessas contribuições, oriundas de  variados espaços de saber. No passado, intelectuais de estatura inquestionável, aplicando métodos e técnicas que se julgaram adequadas, desenvolveram um consistente corpo teórico relativamente estável e grandemente  representativo de um mundo empírico que, na atualidade, vive uma metamorfose sem precedentes.

O que parecia feito e acabado, de repente, apresenta rachaduras, inconsistências e vazios que não podem ser arranjados com os habituais remédios. De se lamentar? Não. Aliás, há uma certeza a reconhecer: incorporando fortemente a tecnologia, como está acontecendo, o Direito apropria-se de vantagens imensas e de um ônus óbvio: o aprofundamento do gap característico que sempre o separou, na linha do tempo, da realidade. Diante dessa fenomenologia fundada na mutabilidade acelerada, de agora em diante não se poderá falar mais de uma TGP pronta. Déficits diariamente renovados farão parte da vida dessa ciência (equilíbrio no caos!).

É estimulante pensar que os conceitos e os espaços de investigação apresentar-se-ão fluidos, temporalmente meteóricos,  necessitados de renovação diária.  Uma TGP do mês passado não mais terá respostas para perguntas que, quando respondidas, já estarão superadas.  Esse, aliás, parece ser o destino de todas as ciências que se dedicam à teorização do humano.

As visões monistas, nascidas do Direito que se estruturou a partir dos modernos, deverão alargar-se para, mantendo, embora, um papel fundamental de coordenação e sistematização, recepcionar e contemplar as variâncias  da realidade lá fora, rica, complexa, hipercomplexa, captadas por outros âmbitos cientificos.

A face de purismo jurídico transformar-se-á num painel serzido com fios de muitos matizes: jurídicos, em boa e indispensável medida, mas entremeados de tecnológicos, sistêmicos, sociológicos, de comunicação e  metodológicos de outras áreas...

Novas categorias, de natureza mista, como a norma tecnológica, demandarão muito mais do cientista, que já não poderá, também nesta área, cultivar um cartesianismo miudo e castrador. Para entender e explicar a realidade multifacetada do novo processo, a TGP vai libertar-se de visões antigas e assumirá a responsabilidade de recepção e sistematização dessa miríade de diferentes saberes.  Disso ela não poderá abrir mão, perseguindo e construindo, por si mesma, o método de cumprimento dessa tarefa.  Ela será menos um corpo de saber, estático e estável, e mais uma dinâmica e continuada reflexão. O oceano para onde correrão os rios de muitos saberes.


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e marcos teóricos para seu estudo.


Muitos amigos me têm dito ser relevante, no desenvolvimento das reflexões sobre a norma tecnológica, o apontamento de um marco teórico.
Ocorre que, dependendo da tarefa assumida ao longo das lucubrações, um ou outro conjunto de diretrizes teóricas pode servir de baliza adequada. 

Hans Kelsen

Kelsen e sua teoria geral das normas é, sem dúvida, um marco primacial. Não se pode falar de norma sem pôr, em muitos momentos, como pano de fundo, o pensamento lógico-jurídico de Kelsen. Seu fundamento teórico é relevante, principalmente, para caracterizar o comando tecnológico como norma jurídica. Embora a constatação possa ser tomada como um axioma, pelas muitas evidências de sua existência,  é possível demonstrar que a norma tecnológica ostenta, em sua abstração, os elementos característicos da norma jurídica que Kelsen tão bem enunciou. Em termos ontológicos, portanto, Kelsen é, a meu ver, uma baliza imbatível. 

Hans Kelsen
Na sua Teoria geral das normas[1], no primeiro item do capítulo 1, o saudoso cientista diz que, com esse termo, se designa " [...] um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas."

Nas próximas quase 500 páginas da obra, Kelsen desdobra-se para esmiuçar esse ente jurídico, para o distinguir de outros tipos de normas (morais, lógicas) e para lhe dar os característicos próprios.  Mas, no meio dessa profusão de pensares, uma coisa fica assentada desde o item III do capítulo 1: a norma é o "sentido de um ato de vontade."[2] Como a norma dá a entender a alguém (o destinatário) que " alguma coisa deve ser ou acontecer", ela assume uma expressão linguística de imperativo ou uma proposição de dever-ser.  
Acompanhar o desenvolvimento subseqüente do pensamento kelseniano tendo, sob o olhar, o ente norma tecnológica, é intrigante e  desafiador. Mas evidencia que, naquele comando codificado imerso num sistema eletrônico de processamento de ações judiciais, há, sem dúvida, uma norma ou um “sentido de um ato de vontade”.

Klaus Günther

Se, por outro lado, se quiser caminhar na direção oposta, na busca de diferenciais desse ente cuja natureza de norma ficou assentada, então outros pensadores podem servir de esteio seguro para o esforço teórico. A distinção paradigmática que Klaus Günther[3] faz, por exemplo,  entre fundamentação e aplicação de norma, na sua tese de doutoramento, oferece subsídios importantíssimos para demonstrar que a norma tecnológica é norma jurídica, mas uma norma diferente. Notadamente na dimensão da aplicação, a norma tecnológica é absolutamente inovadora. Como norma autoaplicadora, ela espanca do cenário da aplicação aspectos até agora considerados relevantes como os ligados à contextualização  e à não vinculação, além de provocar um deslocamento, na linha do tempo, daquele momento crucial em que o aplicador (que desaparece!) deve definir o “sentido do ato de vontade” (a norma) com o qual será armado o computador. 

Referenciais teórico-tecnológicos

Só é possível entender com clareza esse ente, entretanto, se sua natureza mista, jurídico-tecnológica, ficar evidenciada. Falar em norma autoaplicadora é referir-se àquilo que as ciências tecnológicas denominam de agente automatizado.   Portanto, as teorias ligadas ao desenvolvimento de sistemas precisam ser acionadas - um imenso desafio para os juristas, exatamente assim como as teorias jurídicas são uma provação para os tecnólogos.  Os juristas precisam entender como funciona um programa de computador - não é necessário mergulhar na prática tecnológica (escrever ifs, whiles...), mas é necessário, ao menos, ir ao  nível em que os sociólogos sistêmicos chegaram.  Luhmann, por exemplo, fala de programa com uma imensa propriedade, embora num nível de abstração elevado. O filósofo Edgar Morin, idem.  

Teoria dos sistemas
Niklas Luhmann

Aliás, a teoria dos sistemas, em muitos e variados momentos, precisa ser acionada. Entropia, neguentropia, dupla contingência, tempo, sentido, comunicação,  clausura de operação, máquina trivial e não trivial, heteroreferência, autoreferência, interpenetração, conexão, autopoiese, estrutura, auto-organização  são muitos dos inumeráveis conceitos da teoria geral dos sistemas sociais, de viés luhmanniano[4],  que exigem reflexão para bem entender e teorizar os sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais - esse amontoado de diretivas tecnológicas, muitas das quais portadoras de conteúdos jurídicos estritos.

Teoria geral do processo

E, é claro, a nossa sempre necessária e,  agora muito pressionada, TGP.

Enfim, esse ente multifacetado- a norma tecnológica - precisa ser estudado à luz de muitos holofotes teóricos.  



[1] KELSEN, Hans. Teoria geral das normas.  Tradução de José Florentino Duarte.  Porto Alegre:Fabris, 1986.  509p.
[2] KELSEN, Hans. Teoria...,, p. 3.
[3] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[4] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di uma teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna:Società editrice il Mulino,  1990. 761p.  Para uma aproximação mais conceitual, é muito útil a obra de meados da década de 90: LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoría de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.  


terça-feira, 23 de abril de 2013

A sentença que saiu em 39 minutos. O sentido da lei que vai ao computador (III).



Pergunta que não cala:
 E se esse cliente tivesse ido a um advogado?
Como ele resolveria o problema?


Este post é o terceiro de uma série que tenho denominado de “o sentido da lei que vai ao computador”.  

No segundo post, examinei a questão da aplicação da norma tecnológica, tentando chamar a atenção para o fato de que daí emerge um elemento ôntico[1] relevante para a diferenciação da norma tecnológica.  Inclusive com uma ilustração onde inverti a direção da seta que liga norma e fatos para o caso da norma tecnológica.  Numa aplicação típica de norma jurídica, os fatos se refletem sobre a norma legal no esforço de apuração do sentido da lei que será aplicado (discurso de adequação). O aplicador, à luz dos fatos e sob consideração de todas as características relevantes da situação, ajusta a norma para que o resultado seja compatível com os fins do Direito.  No post, tentei demonstrar que a norma tecnológica, que é um agente automatizado, tem o poder de inverter esse movimento de reflexão (no sentido de refletir-se sobre, influenciar...) e, muitas vezes, diante dela e sua inflexibilidade, os fatos precisam ser ajustados, até mesmo para obter acesso e giro do sistema processual.
Muitas vezes é preciso trabalhar os fatos para
ganhar acesso ao sistema processual.

Poucos dias após a publicação do post, surgiu um exemplo vivo na Vara do Trabalho de Pontes de Lacerda, que utiliza o PJe-JT, conforme notícia amplamente divulgada pelo TRT da 23ª Região. A notícia parece comprovar o afirmado no segundo post da série.  Veja-se muito sumariamente:

1. Um empregado foi à vara sem advogado; levou o termo de rescisão homologado, demonstrando dispensa sem justa causa; alegou que o Sine se negou a inscrevê-lo para receber seguro-desemprego porque não tinha comprovante de escolaridade (exigência da lei 12.513/11); tempos depois, quando finalmente logrou obter o aludido comprovante e retornou ao órgão, o prazo de inscrição já havia vencido e o interessado teve o pedido negado novamente; pedia, agora,  na Justiça,  o acesso àquele benefício legal.  A secretaria da vara distribuiu a ação com pedido de alvará judicial que determinasse a habilitação no seguro-desemprego.

2. A notícia continua: “ O atermador assentou no termo, que precisou da orientação do gabinete do juiz auxiliar da Presidência do Tribunal, que coordena o PJe-JT, uma vez que o sistema não prevê ações de jurisdição voluntária (quando não existe parte ré no feito). A orientação foi no sentido de colocar a Caixa Econômica Federal – CEF, no pólo passivo, apenas para viabilizar a distribuição.” [sem grifos no original]

3. A juíza que recebeu a ação, diz a notícia,  “ [...] primeiramente se referiu à questão da colocação da CEF no pólo passivo da ação e, julgando-a parte ilegítima, extinguiu o processo com relação a ela sem adentrar no mérito.” Depois, “ [...]  deferiu o pedido determinando que a própria sentença servisse de alvará judicial  [...] “.  (Processo 0002067-23.2013.5.23.0096)

Não vêm ao caso, aqui, os aspectos jurídicos envolvidos. Interessa sim verificar que, diante do sistema processual eletrônico (o PJe-JT),  as normas postas diante dos operadores - e que são processuais por inúmeras razões, além do simples fato de se postarem como óbices ao exercício do direito público de ação - exigiram que os fatos ganhassem contornos absolutamente inusitados. Destaco apenas duas coisas, embora eu tenha pensado em mais de uma dezena delas:

1) A CEF ganhou, sem saber,  transitório status de ré e serviu para “iludir” o sistema processual e

2) A inépcia da inicial, que levaria à extinção do processo sem julgamento de mérito (parte única manifestamente ilegítima conforme reconhecido pela sentença), não impediu se expedisse sentença com força executiva.

Ou seja, para ter seu pleito levado à mesa de um juiz (devido processo legal - direito fundamental), o trabalhador dependeu do esforço concertado de inumeráveis servidores e magistrados que, sabedores dos meandros do sistema processual eletrônico, puderam dar aos fatos a forma necessária para que o sistema “rodasse” (se dispusesse a dar tratamento à pretensão). A rigidez da norma tecnológica influenciou a descrição dos fatos, sem dúvida.
 
Pergunta que não cala: e se esse cliente tivesse ido a um advogado? Como ele resolveria o problema?



[1] No sentido heideggeriano de referência ao “da-sein”. Ôntico não é tomado como sinônimo de ontológico.  

domingo, 21 de abril de 2013

Code is law! Será? Advogados e cientistas devem "ligar-se" diante do tecnológico

Você está sendo dominado
 pelo computador?

A conhecida afirmação de Lawrence Lessig[1] - code is law! -  tomada acriticamente, condiciona muitos comportamentos, tendo em vista o desconhecimento dos “mistérios” tecnológicos pelos juristas. 
  
No corre-corre de todo dia, diante do processo eletrônico, a primeira urgência dos advogados, por exemplo,  é descobrir o botão a ser apertado, o campo a ser preenchido, o caminho a ser seguido, para fazer a petição da hora.  Os juristas, de forma geral, acham-se sem tempo para avançar pela seara tecnológica, entender o fenômeno da softwarização, que está dominando tudo, e ganhar condições de criticar tal assertiva.

Pois bem... Utilizemos o "botão" para representar todas essas urgências diárias impeditivas de um mergulho mais fundo na teorização do mundo virtual em que estamos imersos. Os prazos são inimigos da perfeição. Sempre foram. Sob a pressão costumeira, entre salas de audiência e escritório,  não há tempo para questionar ou muito pensar. Fazer é preciso.


Mas, ao menos em algumas instâncias especializadas - e a OAB deve desempenhar um papel fundamental nisso! -, é necessário que os advogados comecem a se perguntar se: 

(a) este botão deveria estar aí? 
(b) por que este botão está aí? 
(c) quem botou este botão aí? 
(d) há base legal para este botão estar aí? 
(e) quem e como decidiu que este botão deveria estar aí?
(f) quem pôs o botão aí obedeceu com rigor a determinação dada de colocar o botão aí?

As questões não se referem ao design, é óbvio, ao look-and-feel, à aparência ou à usabilidade, embora esses sejam aspectos importantes também. Elas se reportam ao jurídico.

Essa forma figurativa de exprimir os dilemas e perplexidades de todo dia são um ingrediente indispensável da evolução atual para o processo eletrônico, para que ela ocorra de forma jurídica. E para que se possa afirmar, aí sim, que code is law

O espírito curioso e inquisitivo do advogado - que faz parte do perfil típico desse profissional - deve "ligar-se" diante do tecnológico. Não se pode, simplesmente, aceitar que "código é lei" (code is law). Ou que "código é Direito", que é a tradução mais acertada para a expressão consagrada de Lessig. É bom esclarecer que code, nesse contexto e continuando com a figura inicial do botão, significa "instrução de computador", uma regra codificada que o computador interpreta e cumpre, colocando na tela um "botão" (ou uma exigência qualquer) que deve ser apertado. Code, nesse juízo assertivo, é o  código que legitimamente providencia o botão na tela. Eles  - o código e o botão - representam todos os óbices, dificuldades, facilidades e exigências que  amarguram o advogado, no dia a dia, na operação do sistema eletrônico. Ou o juiz, naquele momento em que deve arranjar um jeito de fazer o processo andar, apesar de o botão necessário e óbvio estar ali mas não produzir exatamente aquele resultado esperado. code é o que está por trás e que realmente produz o visível, o botão. O code é a norma tecnológica.

Essa postura crítico-reflexiva vai expor as muitas intransparências e opacidades  do esforço em curso, no país, para implantar o processo eletrônico,  e dará fundamento para reivindicações de transparência,  abertura e cobranças de condução dos processos segundo os ditames do devido processo (technological due process[2]). 

Pois é... falando para os cientistas, a proposta desse blog  é que a ciência do direito precisa assumir isso (que o código é ou pode ser Direito, ou não!), validar isso, e passar a construir seus arcabouços contemplando esse novo "tijolo" - a norma tecnológica.

A meu ver, isso não tem acontecido. O "code" está precisando ser visto como Direito, dentro do nosso pensar de orientação euro-continental e segundo nosso modo de fazer ciência, com suas especificidades, mas com incorporação ao jurídico com a unção das qualidades que tornam certas regras Direito.

A percepção desse tipo normativo novo - com suas imensas peculiaridades (não interpretação na aplicação, vinculação, prévia-interpretação, deslocamento temporal e espacial das decisões, abandono da ideia güntheriana de situacionalidade no discurso de adequação, generalização/centralização de foro...) -  torna evidente que, ao contrário do que alguns ainda pensam, a tecnologia impacta profundamente a vida do Direito e do processo. A ponto de exigir uma evolução da própria ciência. 

Para o "code" ter acolhida sua pretensão a ser Direito sob a ótica da ciência que, é claro, vai especificar os caminhos para tanto, as reflexões em torno dessa nova espécie normativa parecem-me muito relevantes. 

A Ciência deveria abrir-se para o estudo da norma tecnológica - este ente híbrido jurídico-tecnológico - e os advogados deveriam entendê-la para fazer o que fazem todos os dias diante dos textos legais: escrutiná-los frente à Constituição e a lei.

Num cenário assim, poder-se-ia, sim, passar a trabalhar com a presunção relativa de que code is law.   



[1] LESSIG, Lawrence. Code. Disponível em:  http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf. Acesso em: 18 abr. 2013.
[2] Conforme a expressão utilizada por CITRON, Danielle Keats. Technological due process.  Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1012360. Acesso em: 18 abr. 2013. 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma): o sentido da lei que vai ao computador (II)


Em meu último post, parti da caracterização kelseniana da norma como o "sentido de um ato de vontade do legislador", para evidenciar que a norma jurídica, em geral,  é o produto da ação, primeiro, do legislador e, depois, do intérprete:

Ato legislativo de manifestação de vontade-> expressão linguística -> sentido da expressão linguística (norma) -> aplicação.  O intérprete parte do texto legal, apura a norma e a aplica.

No caso da norma tecnológica (eNorma), o intérprete não a aplica. Ele define o sentido da expressão linguística - a norma - e orienta a transformação desta norma num "ente autoaplicador", num agente automatizado, numa "norma viva".  Para isso, a norma precisa ganhar expressão tecnológica para ser entendida pelo computador e ser executada.  Ela é transformada num programa, num software.

A expressão linguística da norma tecnológica, portanto, não é feita com a linguagem natural humana, mas numa linguagem técnica.  E, uma vez escrita em tal linguagem, não é mais passível de interpretação. Ela é uma interpretação "viva" da lei, que se autoaplica. Entre essa expressão "escrita tecnologicamente" da norma e sua aplicação não há mais qualquer intervenção humana (interpretação). Nesse sentido, ela é uma interpretação "terminal", final, fixa e imóvel (salvo se for reescrita), traduzida numa estrutura dura e insensível, imersa num sistema eletrônico.



Fica evidente, então,  que, no esquema tradicional "ato legislativo -> expressão linguística -> fixação de sentido", há uma abertura permanente para a mobilidade. O juiz, a câmara, a realidade, a situação, tudo impacta a fixação do sentido (norma) que  será aplicado.  O hermeneuta atua como um flexibilizador/ajustador do sentido (ou seja, da norma) para promover, mediante adequações, tanto a mobilidade do ordenamento jurídico para ajustá-lo à evolução da realidade,  como para promover a contextualização (situacionalidade) necessária para dirimir com justiça a situação concreta.


No caso da norma tecnológica, considerando-se que ela já é "um sentido" que se vai autoaplicar (inserido no sistema para se autoaplicar), não há essa mobilidade. Ou, ao menos, não há com o mesmo alcance.  Qualquer alteração deverá passar por uma "reescritura" do sentido no âmbito do sistema, no programa, algo sempre muito delicado e difícil. Uma coisa é fazer considerações para o magistrado e chamar atenção para os detalhes que exigem, no caso, um tratamento especial. Outra, muito diferente, é batalhar pela reescritura de um programa de computador porque determinada hipótese (e todos os dias e em todos os casos temos novas hipóteses) não foi prevista e programada. 


Quando se pensa apenas no processo - detalhes processuais -, tende-se a minorar as consequências dessa constatação, apesar do erro dessa minoração.  Mas quando se considera o avanço para áreas mais sensíveis, em que se deferem ou indeferem direitos materiais - como ocorre com os sistemas de gestão de benefícios que Danielle Keats Citron estudou no Estados Unidos - percebe-se o alcance funesto dessa nuance. 

Num enfoque amplo, portanto, e não reducionista, vê-se que há relevantes decorrências dessa constatação. O Direito está preparado, há séculos, com procedimentos próprios e inumeráveis mecanismos para promover a aplicação justa da norma. Um intérprete aplicador humano, juridicamente estabelecido e preparado, tinha (digo no passado, porque as coisas estão se transformando rapidamente!) a função primacial de, considerando o ordenamento jurídico e a situação a solver, evitar que resultados incompatíveis com o Direito fossem produzidos. 

A norma tecnológica altera isso tudo. A autoaplicação (aplicação automatizada) considera superficialmente as características da situação. E as considera apenas e até os limites postos no programa, ou seja, até onde foram a imaginação do intérprete e do programador no exercício de antevisão (previsão) típica da atividade tecnológica.  

O caso concreto é confrontado com a estrutura programática, estática,  posta no sistema. A situação fica pior quando se tende a buscar um modo de apresentar o caso (conformar!) segundo as exigências do programa. 

Há, no caso, uma inversão completa  do sentido da ação reflexa que caracteriza a aplicação jurídico-humana da norma. Num discurso de adequação típico, o juiz trabalha a norma, dando-lhe feições próprias para bem resolver a situação que está posta para solução. 

Diante de um programa de computador, ou seja, de uma norma fria e anódina que se autoaplica, ocorre exatamente o inverso. Como a norma não é passível de ajuste para bem contemplar a situação e todos os seus sinais característicos, busca-se uma descrição dos fatos que se adapte à configuração algorítmica da norma. A norma reflete-se sobre a descrição dos fatos  e não os fatos sobre a norma, como recomendam os hermeneutas para deslindar com imparcialidade e justiça um caso concreto.

E não há alternativa. Ou se apresentam as coisas segundo as exigências da norma autoaplicadora, ou não se obtém a execução do programa.