Muitos amigos me têm dito ser relevante, no desenvolvimento
das reflexões sobre a norma tecnológica, o apontamento de um marco teórico.
Ocorre que, dependendo da tarefa assumida ao longo das
lucubrações, um ou outro conjunto de diretrizes teóricas pode servir de baliza adequada.
Hans Kelsen
Kelsen e sua teoria geral das normas é, sem dúvida, um marco
primacial. Não se pode falar de norma sem pôr, em muitos momentos, como pano de
fundo, o pensamento lógico-jurídico de Kelsen. Seu fundamento teórico é
relevante, principalmente, para caracterizar o comando tecnológico como norma
jurídica. Embora a constatação possa ser tomada como um axioma, pelas muitas
evidências de sua existência, é possível demonstrar que a norma
tecnológica ostenta, em sua abstração, os elementos característicos da
norma jurídica que Kelsen tão bem enunciou. Em termos ontológicos, portanto,
Kelsen é, a meu ver, uma baliza imbatível.
Hans Kelsen |
Na sua Teoria geral das normas[1],
no primeiro item do capítulo 1, o saudoso cientista diz que, com esse termo, se
designa " [...] um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não
é, todavia, a única função de uma norma. Também conferir poderes, permitir,
derrogar são funções de normas."
Nas próximas quase 500 páginas da obra, Kelsen desdobra-se
para esmiuçar esse ente jurídico, para o distinguir de outros tipos de normas
(morais, lógicas) e para lhe dar os característicos próprios. Mas, no
meio dessa profusão de pensares, uma coisa fica assentada desde o item III do
capítulo 1: a norma é o "sentido de um ato de vontade."[2]
Como a norma dá a entender a alguém (o destinatário) que " alguma coisa
deve ser ou acontecer", ela assume uma expressão linguística de
imperativo ou uma proposição de dever-ser.
Acompanhar o desenvolvimento subseqüente do pensamento
kelseniano tendo, sob o olhar, o ente norma tecnológica, é
intrigante e desafiador. Mas evidencia que, naquele comando
codificado imerso num sistema eletrônico de processamento de ações judiciais, há,
sem dúvida, uma norma ou um “sentido de um ato de vontade”.
Klaus Günther
Referenciais
teórico-tecnológicos
Só é possível entender com clareza esse ente, entretanto, se
sua natureza mista, jurídico-tecnológica, ficar evidenciada. Falar em norma
autoaplicadora é referir-se àquilo que as ciências tecnológicas denominam de
agente automatizado. Portanto, as
teorias ligadas ao desenvolvimento de sistemas precisam ser acionadas - um
imenso desafio para os juristas, exatamente assim como as teorias jurídicas são
uma provação para os tecnólogos. Os
juristas precisam entender como funciona um programa de computador - não é
necessário mergulhar na prática tecnológica (escrever ifs, whiles...), mas é necessário, ao menos, ir ao nível em que os sociólogos sistêmicos
chegaram. Luhmann, por exemplo, fala de
programa com uma imensa propriedade, embora num nível de abstração elevado. O
filósofo Edgar Morin, idem.
Teoria dos sistemas
![]() |
Niklas Luhmann |
Aliás, a teoria dos sistemas, em muitos e variados momentos,
precisa ser acionada. Entropia, neguentropia, dupla contingência, tempo,
sentido, comunicação, clausura de
operação, máquina trivial e não trivial, heteroreferência, autoreferência,
interpenetração, conexão, autopoiese, estrutura, auto-organização são muitos dos inumeráveis conceitos da
teoria geral dos sistemas sociais, de viés luhmanniano[4],
que exigem reflexão para bem entender e
teorizar os sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais - esse
amontoado de diretivas tecnológicas, muitas das quais portadoras de conteúdos
jurídicos estritos.
Teoria geral do
processo
E, é claro, a nossa sempre necessária e, agora muito pressionada, TGP.
Enfim, esse ente multifacetado- a norma tecnológica - precisa ser estudado à luz de muitos holofotes
teóricos.
[1]
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre:Fabris, 1986. 509p.
[2]
KELSEN, Hans. Teoria...,, p. 3.
[3]
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e
aplicação. São Paulo:Landy Editora,
2004. 423p.
[4]
LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti
di uma teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard
Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna:Società
editrice il Mulino, 1990. 761p. Para uma aproximação mais conceitual, é muito
útil a obra de meados da década de 90: LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoría de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres
Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.
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