terça-feira, 23 de abril de 2013

A sentença que saiu em 39 minutos. O sentido da lei que vai ao computador (III).



Pergunta que não cala:
 E se esse cliente tivesse ido a um advogado?
Como ele resolveria o problema?


Este post é o terceiro de uma série que tenho denominado de “o sentido da lei que vai ao computador”.  

No segundo post, examinei a questão da aplicação da norma tecnológica, tentando chamar a atenção para o fato de que daí emerge um elemento ôntico[1] relevante para a diferenciação da norma tecnológica.  Inclusive com uma ilustração onde inverti a direção da seta que liga norma e fatos para o caso da norma tecnológica.  Numa aplicação típica de norma jurídica, os fatos se refletem sobre a norma legal no esforço de apuração do sentido da lei que será aplicado (discurso de adequação). O aplicador, à luz dos fatos e sob consideração de todas as características relevantes da situação, ajusta a norma para que o resultado seja compatível com os fins do Direito.  No post, tentei demonstrar que a norma tecnológica, que é um agente automatizado, tem o poder de inverter esse movimento de reflexão (no sentido de refletir-se sobre, influenciar...) e, muitas vezes, diante dela e sua inflexibilidade, os fatos precisam ser ajustados, até mesmo para obter acesso e giro do sistema processual.
Muitas vezes é preciso trabalhar os fatos para
ganhar acesso ao sistema processual.

Poucos dias após a publicação do post, surgiu um exemplo vivo na Vara do Trabalho de Pontes de Lacerda, que utiliza o PJe-JT, conforme notícia amplamente divulgada pelo TRT da 23ª Região. A notícia parece comprovar o afirmado no segundo post da série.  Veja-se muito sumariamente:

1. Um empregado foi à vara sem advogado; levou o termo de rescisão homologado, demonstrando dispensa sem justa causa; alegou que o Sine se negou a inscrevê-lo para receber seguro-desemprego porque não tinha comprovante de escolaridade (exigência da lei 12.513/11); tempos depois, quando finalmente logrou obter o aludido comprovante e retornou ao órgão, o prazo de inscrição já havia vencido e o interessado teve o pedido negado novamente; pedia, agora,  na Justiça,  o acesso àquele benefício legal.  A secretaria da vara distribuiu a ação com pedido de alvará judicial que determinasse a habilitação no seguro-desemprego.

2. A notícia continua: “ O atermador assentou no termo, que precisou da orientação do gabinete do juiz auxiliar da Presidência do Tribunal, que coordena o PJe-JT, uma vez que o sistema não prevê ações de jurisdição voluntária (quando não existe parte ré no feito). A orientação foi no sentido de colocar a Caixa Econômica Federal – CEF, no pólo passivo, apenas para viabilizar a distribuição.” [sem grifos no original]

3. A juíza que recebeu a ação, diz a notícia,  “ [...] primeiramente se referiu à questão da colocação da CEF no pólo passivo da ação e, julgando-a parte ilegítima, extinguiu o processo com relação a ela sem adentrar no mérito.” Depois, “ [...]  deferiu o pedido determinando que a própria sentença servisse de alvará judicial  [...] “.  (Processo 0002067-23.2013.5.23.0096)

Não vêm ao caso, aqui, os aspectos jurídicos envolvidos. Interessa sim verificar que, diante do sistema processual eletrônico (o PJe-JT),  as normas postas diante dos operadores - e que são processuais por inúmeras razões, além do simples fato de se postarem como óbices ao exercício do direito público de ação - exigiram que os fatos ganhassem contornos absolutamente inusitados. Destaco apenas duas coisas, embora eu tenha pensado em mais de uma dezena delas:

1) A CEF ganhou, sem saber,  transitório status de ré e serviu para “iludir” o sistema processual e

2) A inépcia da inicial, que levaria à extinção do processo sem julgamento de mérito (parte única manifestamente ilegítima conforme reconhecido pela sentença), não impediu se expedisse sentença com força executiva.

Ou seja, para ter seu pleito levado à mesa de um juiz (devido processo legal - direito fundamental), o trabalhador dependeu do esforço concertado de inumeráveis servidores e magistrados que, sabedores dos meandros do sistema processual eletrônico, puderam dar aos fatos a forma necessária para que o sistema “rodasse” (se dispusesse a dar tratamento à pretensão). A rigidez da norma tecnológica influenciou a descrição dos fatos, sem dúvida.
 
Pergunta que não cala: e se esse cliente tivesse ido a um advogado? Como ele resolveria o problema?



[1] No sentido heideggeriano de referência ao “da-sein”. Ôntico não é tomado como sinônimo de ontológico.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário