terça-feira, 26 de novembro de 2013

Dinamarco, o processo eletrônico e os agentes automatizados

Muitos têm afirmado ser necessário evoluir a teoria geral do processo para adequá-la ao processo eletrônico.  Será?
No capítulo XLVI, do título XIV, item 625, do segundo volume de suas Instituições, 3ª edição, de 2002,  Cândido Rangel Dinarmarco enfoca a questão do procedimento e dos atos processuais civis.
Com a habitual clareza, afirma: 
Procedimento é o conjunto ordenado dos atos mediante os quais, no processo, o juiz exerce a jurisdição e as partes a defe­sa de seus interesses. Sabido que o processo se compõe de uma relação entre pessoas e uma relação entre atos (Liebman) ..., procedimento é um dos fatores que o integram, dando expressão sistemática a seus atos.[1]

A leitura rápida do texto deixa passar despercebido um detalhe de muita importância. É necessário ler com atenção, e, além disso,  ler contemplando a realidade processual eletrônica que temos hoje e que, na época do escrito, em 2002, era muito diferente.  Talvez o leitor já tenha percebido a desatualização do texto, provocada pela nova realidade jurídico-processual. Ela é sutil, mas metamorfoseia, desde a base, a visão do ente processo.
Do que estou falando?  Daquele trechinho óbvio que, de tão claro, é lido às pressas, onde o autor afirma, sob influência de Liebman,  que o processo se compõe de “ relação entre pessoas e relação entre atos”.
Nas pp. 198-199, do mesmo volume 2, Dinamarco explica quais são as “pessoas”  implicadas na relação processual: partes, juiz, ministério público, advogados, auxiliares da Justiça  e, inclusive, fazendo ressalvas, as testemunhas.
Parece óbvio que definir um dos elementos da entidade complexa processo, como “relação entre pessoas” já não alcança a fenomenologia processual. Há agentes novos no pedaço. Agentes automatizados que se substituem às pessoas, em variados momentos do processo. Onde se encontrava uma pessoa, encontra-se um software, um programa de computador, com o qual, em interação reativa (conforme o conceito pedagógico da interação homem x máquina), os demais agentes processuais travam seus contatos.
Exemplo: o senhor sistema (eProc, Pje, Projudi) completa, em muitos vértices, a angularidade processual. Para começar, sem passar por ele, não nasce qualquer demanda. Logue-se. Do jeito que ele exige, claro.  Ele lhe vai dar acesso ou não. Entregue a petição, segundo as exigências dele, se não ele rejeita. E não tem papo. Rejeita mesmo. Faça os PDFs dentro dos limites que ele impõe.
Lembro-me da sentença que saiu em 39 minutos. Auxiliares de Justiça, juiz e assessores do tribunal tiveram de render-se a ele, o software, e arranjar um réu, para enganá-lo. Do contrário, não teriam conseguido formar o processo.
Portanto, dizer que o processo é relação entre pessoas e relação entre atos já não espelha a realidade processual.
Este novo agente processual é uma eNorma (norma tecnológica), uma norma auto-aplicadora que se substitui às pessoas. Portanto, dever-se-ia dizer, nos dias atuais, que, além do procedimento (relação entre atos), o processo é uma relação entre pessoas e agentes automatizados. 



[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3.ed. São Paulo:Malheiros, 2003. v.2. p. 453. 

2 comentários:

  1. Muito bom.
    Abordagem que leva a muitas reflexões.
    Uma pergunta amigo. O sistema é continente ou é o próprio conteúdo, em sua opinião?

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  2. Caríssimo Caio,

    Refleti sobre sua interessantíssima questão. Continente e, especialmente, conteúdo, são termos polissêmicos. Adiante, tomo-os, meramente, pelo sentido de “conter ou estar contido”.

    A primeira dúvida que me surgiu, na sequência, foi sobre o "sistema" implicado na pergunta. Isso porque:

    a) sistema pode referir-se ao processo, enquanto sistema (relações entre pessoas e relações entre atos = Dinamarco) e
    b) sistema pode referir-se à ferramenta "sistema eletrônico de processamento de ações judiciais" (Sepaj = PJe, Projudi, eProc).

    Para a teoria dos sistemas, que define o sistema como uma diferença entre ele mesmo (autoreferenciabilidade) e seu entorno (heteroreferenciabilidade), a distinção continente/conteúdo parece replicar, com outros termos, a definição sistêmica. O sistema reconhece-se como contido num entorno (seu continente).

    Falando-se de sistemas sociais (como é o caso dos sistemas do Direito, econômico etc), o único sistema omniabarcador é a própria sociedade. Todos os demais são funcionais e, como tais, parecem poder ser ditos conteúdos do continente “sistema da sociedade” (Luhmann trata disso em Direito da Sociedade). Mas, no caso, não são conteúdos inertes, mas conteúdos ativos, funcionalmente necessários para a manutenção do continente. Não há, portanto, uma mera idéia de “estar contido”, mas de “integrar”, participar da malha constitutiva do grande sistema. O processo, que é o que nos interessa, situa-se dessa maneira em relação ao sistema do Direito.

    Agora, a pergunta fica mais intrigante ao se pensar no Sepaj. Ele é uma ferramenta, sem dúvida, para “fazer” o processo. Tomando-se processo num sentido bem abstrato, constituído apenas pelo fluxo de informações (Wiener) e tomando-se tudo o mais como suporte desse fluxo, o Sepaj, paradoxalmente, parece o constituinte do espaço virtual em que está contido, integralmente, o processo. Continente?!?

    Há muito campo, aí, para reflexões. É interessante que o Sepaj, tomado assim como continente, parece ter o controle absoluto do seu espaço (só há processo com ele).
    No entanto, como a ferramenta não se pode desligar de suas características triviais (Foerster), ela é concebida (ou ao menos deveria ser) com as aberturas para, via penetração (Parsons e Luhmann), receber o aporte “não trivial” de agentes do seu entorno. Com essa abertura, no nível das operações, o Sepaj perde a condição de continente. Paradoxo?!? Ou, do ponto de vista virtual, ele assegura sua condição de continente pelo controle do sistema penetrador? (Autonomia). De fato, entretanto, considerando os diferentes cursos que uma instância processual pode seguir, no mesmo nó, pode-se assegurar que o “continente” sepaj não controla operacionalmente os sistemas penetradores. Logo, sua condição de continente parece situar-se no plano da informação mas não no da operação.

    Obrigado pelo impulso à reflexão.

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