quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A norma tecnológica (eNorma) emerge das novas tecnologias (NTICs)

 Todos os advogados, atualmente, interagem diuturnamente com normas tecnológicas (eNormas). Exemplo: elas estão no lugar daquele humano com o qual o advogado, anteriormente,  interagia  quando distribuía  ou quando solicitava a carga de um processo. Por isso, elas podem ser ditas "normas vivas autoaplicadoras".   É interessante como muitos advogados passam ao largo dessa constatação. No corre-corre de todo dia, o advogado é atendido ou contrariado por tais normas, incomoda-se ou se compraz com o que consegue, e não se dá conta de que, no outro lado, em cada um desses atos, há apenas uma máquina "burra" rodando um programa cujo conteúdo, em vários aspectos, é jurídico. Quem, num sistema eletrônico,  já teve seu recurso não recebido porque intempestivo? Pois é... lá estava ela, a norma processual tecnológica (eNorma), respondendo à juntada do recurso e negando-se a recebê-lo.

Quando se fala em novas tecnologias da informação e da comunicação, vem à baila um feixe de inovações. Algumas são muito visíveis e palpáveis, outras nem tanto [1].

Ao logar-se a um sistema eletrônico de ação, do outro lado está uma norma tecnológica que se autoaplica e que foi codificada segundo uma determinada interpretação da norma que o legislador comunicou em "expressão linguística" (conforme o linguajar kelseniano).  O agente automatizado controla tudo, desde a operação de se logar no sistema até o ato final de se desligar dele (logout).

Pois bem! Falando-se em comunicação, por exemplo, é fácil perceber que as possibilidades das tecnologias a ela vinculadas, ou dedicadas, realmente introduziram muitas inovações na operação processual. Mas será que no processo, em si, também?  Ou elas apenas ampliaram as possibilidades mas não mexeram com o âmago e a natureza dessas operações?

Atos que, antigamente, eram necessariamente presenciais, hoje se fazem à distância, com as garantias necessárias de autenticidade e integridade, por exemplo. Mas, na sua essência, muitos desses atos, salvo o distanciamento dos atores (que a tecnologia aproxima em termos virtuais), continuam sendo exatamente os mesmos e seus atores idem. Na verdade, a comunicação vale-se de inumeráveis tecnologias: de transmissão, registro, interpretação, certificação de autenticidade e integridade, matemáticas, etc., para não mencionar os aparatos de hardware. 

É interessante notar que subjaz a tudo isso uma tecnologia de base, um componente indispensável, o software.  Talvez pela sua indispensabilidade  para o funcionamento de qualquer das outras, o software muitas vezes nem é lembrado. Fala-se do notebook, por exemplo, mas não dos programas que estão nele.

 Essa tecnologia, conforme o enfoque aplicado em nossos estudos, merece uma especial atenção dos juristas, pois se pode dizer que o processo eletrônico é o processo feito com a mediação de um software. Na verdade, de muitos softwares.

Um sistema vivo, dizem os cientistas sistêmicos, caracteriza-se pelo  padrão de organização, pela estrutura e pelo processo vital [2]. Nos sistemas autopoiéticos [3] sociais, também ditos sistemas de comunicação ou de sentido, podem ser identificados os mesmos elementos característicos e, em geral, é a “consciência” que fornece as bases para o processo (o fator dinâmico-operacional) que, no caso, é comunicacional  [4].

Falando-se do processo judicial e tomando-o como sistema social autopoiético (mas não auto-organizador, conforme os conceitos luhmannianos de autopoiese e de auto-organização),  transfere-se, em muitos momentos, para o software, o papel de garantir o componente processual do sistema.  Transferem-se certas atividades do homem para o software. Daí a relevância de seu estudo, caracterização e efetivo controle, e a necessidade de aplicar mecanismos que promovam a transparência dessa transferência de atividades.

Esse software, que se manifesta em lugar de um humano, é um conjunto de instruções codificadas, algumas de conteúdo apenas técnico, para fazer o computador funcionar, e outras - a parte que nos interessa - que correspondem à expressão técnica de conteúdos jurídicos (normas processuais ou materiais escritas em linguagem de computador e aptas a fazerem o computador atuar de determinada forma).  Essas são as normas tecnológicas. Quando o computador rejeita um recurso porque intempestivo, por exemplo, na verdade se trata da atuação de uma norma autoaplicadora que é a  expressão tecnológica da regra processual aplicável.




[1] Para uma visão muito  rápida do espectro das novas TICs, sugere-se uma consulta à Wikipédia.
[2] CAPRA, Fritjof. A teia da vida, p. 135.
[3] LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas.   Para os fins de nossos estudos,  trabalha-se com o conceito de autopoiese na formulação sociológica proposta por Niklas Luhmann  na  elaboração de sua teoria dos sistemas sociais: “Autopoiese significa  [...] determinação do estado posterior do sistema, a partir da limitação anterior à qual a operação chegou.”(p. 113) Com tal afirmação, Luhmann separa conceitualmente autopoiese e auto-organização, no que aproveita lições de Foerster e de Ulrich e  se distancia de Maturana e Varela. “Auto-organização e autopoiesis são dois conceitos que devem manter-se claramente separados.” (p. 112)  Sobre as diferenças apontadas por Luhmann, para os dois âmbitos (social e biológico), notadamente em relação à diferenciação mais aguda de estruturas e operações (que espelham o processo), vejam-se as páginas  119-127.  Na p. 123, por exemplo, o tradutor Javier Torres Nafarrate, um especialista no pensamento luhmanniano, acrescenta a nota 10 onde explica: “cabe observar que Luhmann generaliza o conceito de autopoiesis e que outros sistemas como [...] os neuronais, podem ser definidos como sistemas autopoiéticos. Maturana e Varela descrevem  [...] como sendo autorreferente, mas não autopoiético.”
[4] Sobre a interação, pela via do acoplamento estrutural, de comunicação e consciência, ver LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas... , p. 271 e seguintes.  

domingo, 20 de janeiro de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e assinatura eletrônica: realidade jus-tecnológica

É hora de abrir 2013.  Que todos tenham um ótimo ano! Neste ano, a norma tecnológica (eNorma) deve ganhar a consideração de muitos outros estudiosos. É o que penso...

Há quem veja a afirmação do surgimento desta nova categoria da ciência jurídica, a norma tecnológica, como uma provocação.  Deve-se respeitar essa visão, como qualquer outra, pois apesar de tudo que já se escreveu sobre ciência e neutralidade - há fundamentos para todas as visões! - o que se está tentando é apenas demonstrar que surgiu, no cenário jurídico, esse novo ente científico de natureza jurídico-tecnológica. Filha da automação, a norma tecnológica parece ter de  fazer parte de qualquer abordagem que se faça do jurídico, daqui para a frente.  

Não se trata, portanto, no caso,  de ser contra ou a favor. Trata-se, apenas, de constatar que somente com essa nova categoria da Ciência do Direito é possível abordar, cientificamente, o fenômeno jurídico, no cenário atual, de profunda  "tecnologização".  A incorporação da tecnologia pelo Direito é indiscutível. E disso nasceu uma realidade jus-tecnológica, que todos dizem ampliada e que, portando, supõe um ordenamento também aumentado (o ordenamento com o qual todos estão habituados, acrescido das normas tecnológicas).

O  exemplo da "assinatura eletrônica" é muito bom para refletir sobre essa metamorfose do fenômeno jurídico. 

A lei 11.419/2006 dispõe, nos artigos iniciais,  que:

" Art. 1° - Para o disposto nesta Lei, considera-se : 
[...] 
III - assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário: 
a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica;
b) mediante cadastro de usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

Art. 2o  O envio de petições, de recursos e a prática de atos processuais em geral por meio eletrônico serão  admitidos mediante uso de assinatura eletrônica, na forma do art. 1o desta Lei, sendo obrigatório o credenciamento prévio no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.
§ 1o  O credenciamento no Poder Judiciário será realizado mediante procedimento no qual esteja assegurada a adequada identificação presencial do interessado.
§ 2o  Ao credenciado será atribuído registro e meio de acesso ao sistema, de modo a preservar o sigilo, a identificação e a autenticidade de suas comunicações.
§ 3o  Os órgãos do Poder Judiciário poderão criar um cadastro único para o credenciamento previsto neste artigo."

Estão postas, aí, algumas categorias que chamam a atenção: assinatura eletrônica (gênero), assinatura digital (espécie), cadastro de usuário, credenciamento prévio,  cadastro único de credenciamento, registro e meio de acesso. A exigência do credenciamento prévio fez surgir a controvertida tese do "duplo-requisito", segundo a qual, mesmo com um certificado em mãos, o advogado deve submeter-se ao credenciamento junto ao PJ,  recebendo,  no ato,  o "registro e meio de acesso ao sistema", o que significa que todo advogado tem, ao menos, login/senha para trabalhar.  Ou seja, pode até haver advogado sem certificado digital, mas não deveria haver advogado sem login/senha, nos termos peremptórios da lei.

Trata-se, nesse caso,  da segunda espécie de assinatura eletrônica. Ou seja, ainda que o credenciado esteja de posse de seu certificado digital (e, portanto, já tenha passado, nos termos da lei nacional, pelas rotinas presenciais para obter  meio de  garantir 'autenticidade, integridade e sigilo' de seus atos "virtuais" - ICP-Brasil), deverá renovar esses atos perante o Poder Judiciário e receber, novamente, registro e meio de acesso  com as mesmas finalidades. 

Inútil? Não vem ao caso, aqui, mas se pode consignar que, em muitos momentos, a falta dessa dupla via de acesso tem criado enormes embaraços aos advogados.  Quem já atuou numa comissão de tecnologia da informação de OAB sentiu  o problema. 

Pois bem... 

Posta e interpretada (parcialmente) a regra legal textual, acima transcrita, é válido verificar como ela tem se exprimido em termos tecnológicos

No caso do PJe-JT, por exemplo, suprimiu-se inteiramente a possibilidade de uso da espécie de assinatura eletrônica por login/senha, que o legislador chama de "forma de identificação inequívoca do signatário". Decidiu-se que somente com certificado digital pode haver o acesso à Justiça. 

O legislador  fala em "formas", no plural, o que supõe a existência de mais de uma (como de fato existe na lei). Mas, no PJe-JT,  na implementação das diretrizes dos artigos supra, em termos tecnológicos,  ou o advogado dispõe da forma de assinatura prevista no art. 1°, III, "a", ou não praticará os atos. O sistema processual (agente automatizado) só lhe dará acesso à Justiça se dispuser daquela específica forma de assinar, embora, com certeza, o advogado esteja habilitado para assinar da outra forma.

Certamente, há muitas justificativas e conveniências para isso. Mas  não há uma lei - falo de norma hierarquicamente equivalente à Lei 11.419 - que tenha derrogado a lei 11.419 e instituído, de forma clara, a "via única de acesso ao processo". Assim, a via de acesso única poderia ser interpretada, nos termos da lei, como uma violação das  "prerrogativas legais do advogado". Essa parece uma interpretação bastante razoável, principalmente se se considera a realidade brasileira (social e tecnológica).

A decisão pela via única se fez em algum momento, no âmbito de algum órgão (que pode até estar legitimado para tanto!)  e a norma tecnológica está afinada com esta decisão. Portanto, ela se ajusta apenas parcialmente  à lei. Pode-se pensar, então, que há duas normas no ordenamento: o sentido do texto legal e a que ganhou expressão tecnológica. No âmbito do PJe-JT, não se pode recorrer à lei em si, mas apenas à aplicação daquela lei (sentido em que foi tomada) feita na implementação do sistema processual. 

A norma que se autoaplica, porque integrada ao sistema processual, descolou-se do texto do legislador ( embora se ancore naquele texto), ganhou vida própria e contornos muito específicos. Pela via da interpretação, deu-se à norma tecnológica um alcance que, numa visão bastante razoável, parece restringir lógico-extensivamente a norma legislativa e suprimir dos advogados uma prerrogativa estabelecida na Lei 11.419/2006.

Quer dizer, com as normas tecnológicas faz-se uma realidade ampliada e diferente, jus-tecnológica, em que os direitos e deveres exprimem-se também de um modo novo, diferenciado, tecnológico,   e na qual, doravante,  estaremos todos imersos. Na verdade, já estamos...   Essa realidade nova é tecida de normas de diferentes tipos, inclusive tecnológicas.