Muitos têm afirmado ser necessário evoluir a teoria geral do processo para
adequá-la ao processo eletrônico. Será?
No capítulo XLVI, do título XIV, item 625, do segundo volume de suas
Instituições, 3ª edição, de 2002, Cândido Rangel Dinarmarco enfoca a questão do
procedimento e dos atos processuais civis.
Com a habitual clareza, afirma:
Procedimento é o conjunto
ordenado dos atos mediante os quais, no processo, o juiz exerce a jurisdição
e as partes a defesa de seus interesses. Sabido que o processo se compõe de uma relação entre pessoas e uma relação
entre atos (Liebman) ...,
procedimento é um dos fatores que o integram, dando expressão sistemática a
seus atos.[1]
A leitura rápida do texto deixa passar despercebido um detalhe de muita
importância. É necessário ler com atenção, e, além disso, ler contemplando a realidade processual
eletrônica que temos hoje e que, na época do escrito, em 2002, era muito
diferente. Talvez o leitor já tenha
percebido a desatualização do texto, provocada pela nova realidade
jurídico-processual. Ela é sutil, mas metamorfoseia, desde a base, a visão do
ente processo.
Do que estou falando? Daquele
trechinho óbvio que, de tão claro, é lido às pressas, onde o autor afirma, sob
influência de Liebman, que o processo se
compõe de “ relação entre pessoas e relação entre atos”.
Nas pp. 198-199, do mesmo volume 2, Dinamarco explica quais são as
“pessoas” implicadas na relação
processual: partes, juiz, ministério público, advogados, auxiliares da
Justiça e, inclusive, fazendo ressalvas,
as testemunhas.
Parece óbvio que definir um dos elementos da entidade complexa processo,
como “relação entre pessoas” já não alcança a fenomenologia processual. Há
agentes novos no pedaço. Agentes automatizados que se substituem às pessoas, em
variados momentos do processo. Onde se encontrava uma pessoa, encontra-se um software, um programa de computador, com
o qual, em interação reativa (conforme o conceito pedagógico da interação homem
x máquina), os demais agentes processuais travam seus contatos.
Exemplo: o senhor sistema (eProc, Pje, Projudi) completa, em muitos
vértices, a angularidade processual. Para começar, sem passar por ele, não
nasce qualquer demanda. Logue-se. Do jeito que ele exige, claro. Ele lhe vai dar acesso ou não. Entregue a
petição, segundo as exigências dele, se não ele rejeita. E não tem papo.
Rejeita mesmo. Faça os PDFs dentro dos limites que ele impõe.
Lembro-me da sentença que saiu em 39 minutos. Auxiliares de Justiça, juiz e
assessores do tribunal tiveram de render-se a ele, o software, e arranjar um réu, para enganá-lo. Do contrário, não
teriam conseguido formar o processo.
Portanto, dizer que o processo é relação entre pessoas e relação entre atos
já não espelha a realidade processual.
Este novo agente processual é uma eNorma (norma
tecnológica), uma norma auto-aplicadora que se substitui às pessoas. Portanto,
dever-se-ia dizer, nos dias atuais, que, além do procedimento (relação entre
atos), o processo é uma relação entre pessoas e agentes automatizados.
[1]
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições
de direito processual civil. 3.ed. São Paulo:Malheiros, 2003. v.2. p. 453.