terça-feira, 26 de novembro de 2013

Dinamarco, o processo eletrônico e os agentes automatizados

Muitos têm afirmado ser necessário evoluir a teoria geral do processo para adequá-la ao processo eletrônico.  Será?
No capítulo XLVI, do título XIV, item 625, do segundo volume de suas Instituições, 3ª edição, de 2002,  Cândido Rangel Dinarmarco enfoca a questão do procedimento e dos atos processuais civis.
Com a habitual clareza, afirma: 
Procedimento é o conjunto ordenado dos atos mediante os quais, no processo, o juiz exerce a jurisdição e as partes a defe­sa de seus interesses. Sabido que o processo se compõe de uma relação entre pessoas e uma relação entre atos (Liebman) ..., procedimento é um dos fatores que o integram, dando expressão sistemática a seus atos.[1]

A leitura rápida do texto deixa passar despercebido um detalhe de muita importância. É necessário ler com atenção, e, além disso,  ler contemplando a realidade processual eletrônica que temos hoje e que, na época do escrito, em 2002, era muito diferente.  Talvez o leitor já tenha percebido a desatualização do texto, provocada pela nova realidade jurídico-processual. Ela é sutil, mas metamorfoseia, desde a base, a visão do ente processo.
Do que estou falando?  Daquele trechinho óbvio que, de tão claro, é lido às pressas, onde o autor afirma, sob influência de Liebman,  que o processo se compõe de “ relação entre pessoas e relação entre atos”.
Nas pp. 198-199, do mesmo volume 2, Dinamarco explica quais são as “pessoas”  implicadas na relação processual: partes, juiz, ministério público, advogados, auxiliares da Justiça  e, inclusive, fazendo ressalvas, as testemunhas.
Parece óbvio que definir um dos elementos da entidade complexa processo, como “relação entre pessoas” já não alcança a fenomenologia processual. Há agentes novos no pedaço. Agentes automatizados que se substituem às pessoas, em variados momentos do processo. Onde se encontrava uma pessoa, encontra-se um software, um programa de computador, com o qual, em interação reativa (conforme o conceito pedagógico da interação homem x máquina), os demais agentes processuais travam seus contatos.
Exemplo: o senhor sistema (eProc, Pje, Projudi) completa, em muitos vértices, a angularidade processual. Para começar, sem passar por ele, não nasce qualquer demanda. Logue-se. Do jeito que ele exige, claro.  Ele lhe vai dar acesso ou não. Entregue a petição, segundo as exigências dele, se não ele rejeita. E não tem papo. Rejeita mesmo. Faça os PDFs dentro dos limites que ele impõe.
Lembro-me da sentença que saiu em 39 minutos. Auxiliares de Justiça, juiz e assessores do tribunal tiveram de render-se a ele, o software, e arranjar um réu, para enganá-lo. Do contrário, não teriam conseguido formar o processo.
Portanto, dizer que o processo é relação entre pessoas e relação entre atos já não espelha a realidade processual.
Este novo agente processual é uma eNorma (norma tecnológica), uma norma auto-aplicadora que se substitui às pessoas. Portanto, dever-se-ia dizer, nos dias atuais, que, além do procedimento (relação entre atos), o processo é uma relação entre pessoas e agentes automatizados. 



[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3.ed. São Paulo:Malheiros, 2003. v.2. p. 453. 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A eNorma e o computador ‘boca da lei”: regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena (I)

Será que o avanço tecnológico vai propiciar, em alguma medida,  a concretização do
antigo e malfadado sonho do “juiz boca da lei”?

Se automatizar é, por definição, transferir uma atividade humana para um “agente automatizado”, então automatizar o processo é, sem dúvida, colocar o computador, em muitos e variados momentos, a aplicar a lei (tomada em sentido amplo). Do “logar-se” ao sistema eletrônico até o controle de prazos, passando pelas inúmeras exigências postas pelo sistema para a prática dos atos processuais, vê-se que interlocutores humanos estão sendo substituídos por agentes automatizados. Há, mesmo, quem reacenda as ideias de automatizar o processo não apenas no âmbito formal, como tem ocorrido até agora nos sistemas processuais,  mas no mérito[1]. Alguns tendem a postar-se contra esse movimento de automação como se fosse imanentemente ruim automatizar os atos. Não parece o caso.  Principalmente no processo, há muito espaço onde o computador pode dar contribuições ímpares.

Os compreensivistas sempre se preocuparam com o fator  incontrolável posto entre a proposição linguística (a lei) que sai do legislador e o sentido em que ela é tomada para aplicação[2]

Segundo a visão dos positivistas, e mais ainda para os que cultivam visões instrumentalistas do Direito, esse fator incontrolável no trajeto de especificação da norma jurídica tornou-se um pé-de-aquiles do Direito.  É inócuo instituir um bom procedimento, por exemplo, dizem eles, se, no final, tudo desanda nas mãos manejadas monologicamente pelo intérprete. As visões da sentença como vontade da lei, do intérprete ou de ambos transitam por tais pensares. E o esvaziamento do silogismo, como garantia lógica de decisão calcada nos fatos, ficou reconhecido. Nem mesmo os sonhos habermasianos de verdade a posteriori, como construção coletiva no âmbito do processo, parecem vencer essa irremediável (e inexorável) tendência para a incertidumbre jurídica. O juiz “boca da lei”[3] sempre foi tido como um sonho para ser perpetuamente sonhado e jamais realizado. Felizmente, parece-me. 

Na tentativa “do dispor e fazer acontecer” do legislador,  a Escola da Exegese preconizava caminhos rígidos de aplicação da norma.  Tudo, sempre, para que o intérprete não ficasse à vontade para impor, pela via espúria de uma interpretação de conveniência, sua vontade. Afinal, dizem alguns, interpretar é perverter a lei (Gadamer?).

Se se faz uma leitura superficial de Legitimação pelo procedimento, Luhmann[4] parece entregar os pontos ao denunciar que o procedimento legitima tudo. E, temeroso,  preconiza ao menos o estabelecimento de mecanismos para minorar a influência dos papéis externos do julgador. 

Alexy e Günther[5] sugerem, claramente,  a necessidade de uma lógica de aplicação. 
E esses, mesmo preocupados com os eventuais desvirtuamentos, tentam demonstrar que, sem a atuação do intérprete,  o Direito tem de abrir mão de sua pretensão de Justiça. Não é possível um Direito que não contextualize a aplicação da força, que não se tempere diante dos fatos e onde o discurso de adequação (construção maior do intérprete) seja expurgado. Sem adequação não há justiça (?!?) na decisão.

De qualquer jeito, e diante desses vários exemplos,  desde Napoleão e seus desejados "juízes bocas da lei" até os pós-positivistas, dos tempos da Nova Hermenêutica, sempre houve preocupação com o fenômeno da "interpretação".  Ela é parte da dinâmica do sistema jurídico. 

Na nova realidade justecnológica em que estamos entrando de cabeça, este zelo, agora, terá de lidar com a eNorma. Seu manejo exige a atenção dos juristas porque, como se disse em post anterior, a eNorma quebra o espaço jurídico de aplicação normativa em dois: uma parte flexível,  em que remanesce a interpretação e  a humanidade, e outra parte rígida e trivial, a parte  da eNorma, em que prevalece a frieza tecnológica e onde se esfumaça o discurso de adequação.

Verifique-se que  os tamanhos desses espaços tendem a alterar-se. Ao menos no processo, há ainda uma preponderância avassaladora dos “espaços humanos”. Mas os espaços de não flexibilidade estão em expansão.  E tais espaços, plenos de automação,  concretizam, de alguma forma,  o velho e inalcansável sonho do “juiz boca da lei”. De alguma forma, é importante dizer, conforme pretendo demonstrar num próximo post.  

A eNorma, pela sua marcante característica da autoaplicação, traz à luz o “computador boca da lei”. Uma vez programado, o computador, porque não interpreta, cumpre à risca os comandos dispostos por quem o programou.

Daí a razão pela qual as estipulações das eNormas devem ser cercadas da maior transparência, do maior zelo e da máxima participação dos envolvidos. As pessoas devem (i) estar muito bem informadas quanto ao que significa a automação e sobre os imensos benefícios que pode proporcionar aos procedimentos de adjudicação do Direito (regra da automação consciente); (ii) ter canais institucionalizados para participar da definição das regras que serão objeto de codificação tecnológica (regra da legitimação) e (iii) poder assegurar-se de que a função informática em operação corresponde, de fato, às regras  fixadas com sua participação (regra da transparência plena)[6].

Sob tais condições, nos espaços em que o computador pode auxiliar na aceleração do processo, toda contribuição tecnológica deve ser bem recebida e adotada.



[1] Na UFPR, há um grupo de estudiosos, de inquestionável gabarito,  que tem posto atenção nessa ideia.
[2] Conforme a visão que Kelsen lançou e sustentou durante toda a vida (da Teoria Pura à Teoria Geral das Normas).
[3] Conforme a expressão consagrada por Montesquieu la bouche de la loi.
[4] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília:UnB, 1980. 210p.
[5] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[6] Conforme disposto no item 7 de meu artigo de 2012






sexta-feira, 19 de julho de 2013

Direito nômade: desembargador de MG apresenta tese de doutoramento

Temos todos, hoje, às 16h30, a oportunidade única - agora viabilizada pela internet - de assistir à apresentação da tese de doutoramento do Des. Federal do Trabalho de Minas Gerais  - o Doutor José Eduardo Chaves Jr.- uma figura reconhecidamente comprometida com o avanço da tecnologia no âmbito jurídico e com a teorização desse amálgama Direito+Tecnologia. 

Aos que puderem assistir, minha especial recomendação. Abaixo encontram-se as informações necessárias para assistir ao evento, na mensagem convite expedida pelo palestrante:


Amigos,
Hoje iremos apresentar nosso trabalho de doutorado. Um primeiro passo teórico, e nômade, um mero experimento para tentar substituir a 'imputação' de Kelsen, pela 'conexão' de Deleuze.

No século XXI, o direito está a cada dia mais desterritorializado, mais mutante, mais sujeito ao pluralismo jurídico.
A pirâmide kelsenena respondia bem ao cenário do início do século passado, do experimentalismo lógico, do individualismo e da prevalência do direito nacional.

O direito vem a reboque da prática. É preciso começar a pensar, teoricamente, o que a realidade virtual, a e-democracia e os fenômenos de rede já começam a nos impor.

A tese foi orientada pelos Professores Rafael de Asís Roig (Filosofia do Direito) e Antonio Baylos (Direito do Trabalho), ambos Catedráticos na Espanha.

Haverá transmissão on line por internet.  Horário: 16:30 horas.

A interação com perguntas e observações será possível via Twitter( @pepechaves ) ou por e-mail  ( pepe.chaves.1@facebook.com )

Link da transmissão: 
http://www.tvtrtmg.com.br/site/index.php?p=aovivo/&canal=1
Link da noticia:  http://as1.trt3.jus.br/noticias/no_noticias.Exibe_Noticia?p_cod_area_noticia=ACS&p_cod_noticia=9117 "




__._,_.___"

terça-feira, 16 de julho de 2013

eNorma e direito fundamental à transparência tecnológica

Transparência: o direito de olhar,
ver e entender
Em artigo do final de 2012, lançamos duas ideias básicas referentes ao reconhecimento da existência da eNorma (norma tecnológica) e à necessidade correlata de estabelecer padrões de transparência a respeito.   Entre outras coisas, no artigo,  (i) constatou-se a chegada das novas tecnologias da informação e da comunicação ao processo, (ii) passou-se pelo exame do impacto de uma delas – o software - num fenômeno  referido como softwarização do processo,  (iii) evidenciou-se o surgimento da nova categoria científica processual - a norma tecnológica ou eNorma - e (iv)  chegou-se à sugestão de enunciação e constitucionalização de um novo direito fundamental  à transparência tecnológica.  

Pelas circunstâncias do momento, usou-se o processo e sua informatização para demonstrar a urgência de explicitar esse direito fundamental à transparência tecnológica[1]. Mas, na verdade, tal direito  tem sido ventilado e justificado, num âmbito mais geral, e se faz necessário diante do avanço das tecnologias em todas as áreas de egovernança.

Em 2007, nos Estados Unidos, Danielle Keats Citron, professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Maryland/EUA,  desenvolveu um extenso trabalho de pesquisa e compilação, reportado em artigo sob o título technological due process[2], enfocando a atuação das agências administrativas e suas práticas automatizadas. A pesquisa concentrou-se nos chamados BMSs (Benefits Management Systems) norteamericanos e os incontáveis exemplos presentes naquele estudo demonstram o impacto, os problemas e as dificuldades da automação dos processos de adjudicação dos benefícios. No Brasil, o projeto do novo código de processo civil  reconhece a presença das inovações e os teóricos falam, aqui também, do devido processo tecnológico.

Por outro lado, parece estranho voltar à carga com a questão da transparência, uma vez que, em 2011, no Brasil, a lei 12.527 tratou do acesso à informação, sob discurso estribado fortemente na ideia de transparência. Aquela lei, entretanto,  acrescentou pouco à disciplina processual, toda ela permeada, desde a base, pela publicidade.  Por incrível que pareça, o legislador, em tão extenso e minucioso documento, não se ocupou adequadamente das novas tecnologias da informação (TIs), colocando sua incorporação, clara e expressamente, sob as luzes da transparência.  Nesse especial aspecto, a lei poderia ter efetivamente inovado para o processo, que está sendo invadido por essas tecnologias, mas não o fez.

O que se quer dizer é que o legislador ocupou-se dos dados e, pela via da facilitação do acesso a eles, buscou cercá-los da necessária transparência.  Perfeito? Nem tanto. 

Num mundo dominado pelas tecnológicas da informação, onde o acesso ao dado é sempre mediatizado (não se consegue ler nada diretamente, dependendo sempre de uma ferramenta!), parece claro que a própria ferramenta deve ser alvo dessa “prescrição de transparência”.  

Como demonstra o artigo de 2012, quando se aprofunda o fenômeno da softwarização e os sistemas vão além da mera recepção e do manejo dos dados para exibi-los, ocupando-se, também, de muitos aspectos anteriormente entregues a humanos (automação, agentes automatizados...), a questão da transparência ascende a nível superior. Pode-se estar diante das normas tecnológicas (eNormas) e saber, em linguagem clara e acessível, como foi determinado e codificado o programa com o qual todos irão interagir é um direito fundamental.  Saber por que, onde, quando,  por quem  e, notadamente, como o agente automatizado de interação está determinado para agir parece, sem dúvida, ser um direito dos usuários dos sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais (SEPAJs).




[1] Entende-se que este assunto merece um tratamento geral, com fundamentos ampliados. No artigo, fechou-se o foco no processo judicial e explicitou-se o direito fundamental geral como um caso particular para o processo. 
[2][2] CITRON, Danielle Keats. Technological due process. Washington University Law Review.  St. Louis, v. 85, p. 1249, 2008.  O paper está disponível em: http://ssrn.com/abstract=1012360. Acesso em: 25 jun. 2012. 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

eNorma: o sentido da lei que vai ao computador (IV).

Em mensagem que recebi recentemente de um colega magistrado, Kleber Waki(1), consta a seguinte afirmação:
"Ao mesmo tempo em que vou tentando compreender a expressão [norma tecnológica] como uma forma de interpretação da norma jurídica adotada pelo sistema,"
"Parece-me" -  respondi-lhe - " que tirando a palavra 'forma', e trocando 'norma jurídica' por 'expressão linguística' fica perfeito. O texto ajusta-se exatamente à definição de norma jurídica de Kelsen!".

O texto, portanto, a meu ver,  ficaria assim: "...a norma é a interpretação da expressão linguística (aquela que vem do legislador, a lei!) adotada pelo sistema!"

O primeiro post desta série (o sentido da lei que vai ao computador) trata exatamente dessa questão.
Para entender a eNorma, a primeira coisa a ser feita é mergulhar na acepção de norma juridica que Kelsen nos deixou, a partir da Teoria Pura, embora isso fique bem marcado, também, na sua obra póstuma Teoria Geral das Normas. Contrariando o uso diário e corriqueiro da expressão norma jurídica, Kelsen afirma que o que o legislador nos dá, na lei, é uma "proposição linguística". O sentido com que tal proposição é tomada, depois, para aplicação, é que é a norma jurídica. Os realistas norte-americanos expressavam isso muito bem. É apenas na aplicação que se conhece, efetivamente, o Direito (a norma jurídica), portanto.

No caso da eNorma, isso se transforma de maneira substancial. A proposição linguística inicial, em línguagem natural (português, por exemplo), deve ser transformada numa expressão linguístico-tecnológica (em linguagem de programação de computador).

Isso significa que há uma antecipação daquele momento de aplicação, quando o aplicador interpreta a expressão linguística e  define o sentido em que a tomará para deslindar o caso que se apresenta.
Para elaboração do sistema eletrônico, alguém deve definir o sentido da expressão que será convertido na expressão linguístico-tecnológica.  No linguajar dos técnicos, isso significa definir a "regra de negócio".

É interessante notar que, a partir dessa "tradução" - da linguagem natural para a linguagem tecnológica - entra-se num espaço diferente, onde não mais incide o fenômeno da interpretação para a aplicação - que já foi feita anteriormente - e onde a aplicação está pré-determinada.

As decorrências disso são imensas, portanto: pré-interpretação, pseudo-contextualização na aplicação, norma auto-aplicadora, vinculação absoluta, abandono da não trivialidade por um espaço dominado pela trivialidade (Foerster), nova expressão linguístico-tecnológica. Bem se vê, uma imensidão de consequências que justificam se distinga esse novo tipo normativo.

(1) Kleber Waki é juiz federal do trabalho no Estado de Goiás e um estudioso do processo eletrônico. Em suas reflexões e análises, é sempre muito incisivo no cotejo de prática e teoria, uma postura cada vez mais indispensável para o aprfeiçoamento dos sistemas processuais eletrônicos. Agradeço-lhe a gentileza de autorizar sua citação neste post

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e clausura de operação em Luhmann.


Em post anterior,  parti de Kelsen e sua visão de norma como sentido da "expressão linguística" representativa do ato de vontade do legislador e tentei demonstrar que, nesse trajeto de definição da norma, tem-se:

Legislador -> expressão linguística (norma prima facie ou texto da lei) -> intérprete aplicador -> norma

A ação do intérprete, em geral,  se faz  no momento imediatamente anterior à aplicação propriamente dita, sob a consideração dos fatos que compõem o litígio a resolver.

Ora, no caso da norma tecnológica, há também essa atuação do intérprete para definir o "sentido da lei" que será levado ao sistema eletrônico processual,  o sentido que será convertido em código tecnológico,  em norma tecnológica. Mas ela ocorre num momento diferente, anterior na linha do tempo, em relação ao caso a resolver.

Essa definição de sentido do texto legal (a norma), estabelecido para deslindar as situações jurídicas previstas (imaginadas como de ocorrência possível no futuro)  e que ganha expressão tecnológica, incorporando-se a um sistema eletrônico, é a norma tecnológica. Não há dúvida.   Veja-se que, partindo da expressão lingüística em linguagem natural, apura-se um sentido que é escrito em linguagem tecnológica (algoritmo) - linguagem própria para ser compreendida por uma máquina - e vai determinar o comportamento do sistema eletrônico quando se apresentar exatamente uma daquelas situações antevistas pelo intérprete.

Define-se, hermeneuticamente, um sentido (norma) que se transforma num ente “autoaplicador”, num programa de computador que, automaticamente, vai se autoaplicar. Desse simples entendimento surge uma miríade de conseqüências teóricas e práticas.

Luhmann, em seus estudos do Direito à luz da teoria dos sistemas, chama a atenção para a característica sistêmica do fechamento operativo (clausura de operação).  Da visão antiga dos sistemas abertos (entrada-> processamento -> saída),  a teoria dos sistemas, para dar um passo adiante e absorver as noções de auto-organização e de autopoiese (que Luhmann distingue estritamente), teve de introduzir o conceito de fechamento operativo, pelo qual, para dizer de maneira muito rápida e simplificada, estabelece-se que um sistema, de fato, manifesta-se em sua operação e não por suas entradas e saídas.  Só se conhece um sistema, efetivamente, imergindo em sua malha operativa.

O conceito de trivialidade é sempre lembrado por Luhmann, quando fala de clausura de operação,  para distinguir os sistemas  entre triviais e não triviais (Foerster). Nos sistemas não triviais, aos mesmos inputs podem corresponder diferentes outputs - ou até  nenhum output - porque o estado interior do sistema tem influência sobre seu  funcionamento.  Ou seja, o conceito de clausura de operação permitiu avançar da teoria dos sistemas abertos, mas triviais,  (Bertalanfy) para a teoria dos sistemas fechados apenas operacionalmente, porque não condicionáveis pelas entradas (não triviais). O conceito de clausura de operação liberou a teoria dos sistemas para estabelecer os balizamentos aplicáveis aos sistemas sociais, onde o meio não condiciona, causalmente, o comportamento sistêmico. 

O Direito, por exemplo, embora seja operacionalmente fechado, caracteriza-se pela não trivialidade. E, sob tais novas luzes,  pode receber o influxo teórico da teoria geral dos sistemas.

Pode-se estabelecer, é verdade, sob medidas de probabilidade, uma expectativa para o output. Mas não se pode assegurar trivialmente um resultado, porque o sistema pode responder de forma diferente aos mesmos inputs. Lógicas modais - e notadamente a deôntica e seus paradoxos - prestam-se à teorização de tais comportamentos.

Pois bem... 

O que acontece quando o intérprete define o sentido da lei  - que é a norma - para o programador codificar no programa do sistema processual?

O Direito abandona seu caráter não trivial e trivializa-se completamente.  A norma, que humanamente aplicada é sempre não trivial (cada juiz uma sentença!), transforma-se numa máquina trivial, numa função que, para as mesmas entradas, repete consistentemente os mesmos resultados. 

Por ser uma norma autoaplicadora, o código tecnológico tem seus caminhos fixamente definidos (mesmo que sejam muitos os previstos) e exige entradas exatamente como as previstas pelo programador. Qualquer alteração nas entradas (que fuja às variações previstas = expectativas!) não encontrará escoamento pelas estruturas rígidas do código. Por outro lado, se as entradas são oferecidas de forma correta, os caminhos  previamente traçados (programados) serão percorridos até o resultado previsto. Com precisão. 

Essa é uma forma, sob ótica sistêmica, de demonstrar que a norma tecnológica (eNorma) é diferente, porque "desumanizada" na aplicação. Enquanto a norma prima facie é apenas um "apontar de caminhos" que o intérprete humano pode ou não seguir, dependendo das circunstâncias relevantes que o caso concreto apresentar, a norma tecnológica é um conjunto de caminhos pré-fixados. 


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Contra a ideia de norma tecnológica (eNorma)


Alguns estudiosos têm negado a possibilidade de dar à norma tecnológica o status de norma jurídica. Segundo essa linha teórica, o código imerso num sistema não é Direito, não pode ter o atributo da normatividade, situando-se no “além do Direito”, no entorno do sistema jurídico, como diria Luhmann, no espaço de complexidade e contingência  que o sistema vê apenas com seu sentir heteroreferencial. 

Refletindo a respeito, não pude deixar de me remeter ao maravilhoso capítulo 8 do Curso de Direito Constitucional do prof. Paulo Bonavides[1], quando o respeitado mestre leva o leitor, numa  viagem especial, das posições da Velha Hermenêutica, que negavam normatividade aos princípios, à exuberância do papel dos princípios alcançada no pós-positivismo, passando, num caminho rico de tensões e disputas de verdadeiros titãs teóricos, por Del Vecchio, Boulanger, Betti, Larenz, Esser, Crisafulli, Dworkin, Alexy e Bobbio. 

Analogicamente, e abstraindo de lá, é claro, apenas a resistência ao avanço teórico, penso um pouco diferente em relação à visão do code como Direito. Defendo não só a  aceitação da possibilidade da existência da  norma tecnológica como, ainda mais,  entendo ser imprescindível esse passo para um avanço teórico necessário no atual momento da realidade mundial.

Fechar-se a essa possibilidade, em termos dogmáticos, cerceia o esforço teórico exatamente onde ele está mais deficiente, diante da nova realidade jurídico-virtual em que nos enredamos cada vez mais. Do mesmo modo, considerá-lo Direito, acriticamente, refreia o pensar num ponto onde as lucubrações mais se fazem necessárias. As duas hipóteses - negar a possibilidade ou considerá-lo desde logo Direito - equivalem-se em termos de construção científica.

Ao começar a escrever a respeito, não pretendi redescobrir o que Lessig[2], e principalmente CITRON[3] (que é muito mais incisiva, porque baseia a pesquisa num sistema automático de concessão de benefícios e que cito na abertura de meu artigo), já haviam antevisto. Entendo que somente  aceitando o software como norma (quando tem conteúdo jurídico) é possível submetê-lo aos mecanismos jurídicos especializados de validação da produção  normativa.

Além disso, não ver normatividade no código, na atualidade do sistema processual brasileiro, considerando-se que, sob luzes sistêmicas, normatividade e positividade são afins (Luhmann[4], quando trata de clausura operacional, em qualquer das várias obras), parece-me incongruente.

Penso, portanto,  que a TGP vai crescer e ganhar possibilidade de pensar o Direito com tecnologia de uma maneira mais consistente a partir do momento em que acolher a norma tecnológica em seu seio. Jogá-la para o entorno significa que será preciso explicar/teorizar o Direito com tecnologia sem tomá-la em consideração e isso pode ser, no mínimo,  muito problemático. Como o sistema se manifesta na operação, haverá claramente giros recursivos de comunicação - dentro do subsistema processual - que carecerão de justificação do enlace operacional característico e ininterrupto dos sistemas autopoiéticos. 

Em meu último post,  eu tinha me referido exatamente à necessidade dessa ampliação de visão da TGP para, sem abrir mão de seu papel de sistematização, recepcionar as muitas e variadas contribuições que estão vindo de outras áreas, inclusive da tecnológica. 

É importante lembrar que ver o software (instruções técnicas de conteúdo jurídico) como mero "enunciado" não corresponde à natureza dessa nova categoria científica.   O software é norma autoaplicadora,  e esta - a autoaplicação - talvez seja o mais contundente diferencial dessa nova categoria de norma.



[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo:Malheiros, 2000. p. 228 e seguintes.
[2] LESSIG, Lawrence. CODE. Disponível em: http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf. Acesso em:  13 nov. 2011.
[3] CITRON, Danielle Keats. Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.
[4] Exemplificativamente, LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft).  Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: http://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html. Acesso em: 10 nov. 2011.


domingo, 28 de abril de 2013

A teoria geral do processo para um mundo só de processo eletrônico, com muita norma tecnológica.


Vivemos um momento especial em que contribuições importantes, de várias disciplinas, deverão ser amalgamadas numa teoria consistente sobre o processo operado com instrumentos proporcionados pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs).

A  TGP está pressionada e parece ser o porto de chegada dessas contribuições, oriundas de  variados espaços de saber. No passado, intelectuais de estatura inquestionável, aplicando métodos e técnicas que se julgaram adequadas, desenvolveram um consistente corpo teórico relativamente estável e grandemente  representativo de um mundo empírico que, na atualidade, vive uma metamorfose sem precedentes.

O que parecia feito e acabado, de repente, apresenta rachaduras, inconsistências e vazios que não podem ser arranjados com os habituais remédios. De se lamentar? Não. Aliás, há uma certeza a reconhecer: incorporando fortemente a tecnologia, como está acontecendo, o Direito apropria-se de vantagens imensas e de um ônus óbvio: o aprofundamento do gap característico que sempre o separou, na linha do tempo, da realidade. Diante dessa fenomenologia fundada na mutabilidade acelerada, de agora em diante não se poderá falar mais de uma TGP pronta. Déficits diariamente renovados farão parte da vida dessa ciência (equilíbrio no caos!).

É estimulante pensar que os conceitos e os espaços de investigação apresentar-se-ão fluidos, temporalmente meteóricos,  necessitados de renovação diária.  Uma TGP do mês passado não mais terá respostas para perguntas que, quando respondidas, já estarão superadas.  Esse, aliás, parece ser o destino de todas as ciências que se dedicam à teorização do humano.

As visões monistas, nascidas do Direito que se estruturou a partir dos modernos, deverão alargar-se para, mantendo, embora, um papel fundamental de coordenação e sistematização, recepcionar e contemplar as variâncias  da realidade lá fora, rica, complexa, hipercomplexa, captadas por outros âmbitos cientificos.

A face de purismo jurídico transformar-se-á num painel serzido com fios de muitos matizes: jurídicos, em boa e indispensável medida, mas entremeados de tecnológicos, sistêmicos, sociológicos, de comunicação e  metodológicos de outras áreas...

Novas categorias, de natureza mista, como a norma tecnológica, demandarão muito mais do cientista, que já não poderá, também nesta área, cultivar um cartesianismo miudo e castrador. Para entender e explicar a realidade multifacetada do novo processo, a TGP vai libertar-se de visões antigas e assumirá a responsabilidade de recepção e sistematização dessa miríade de diferentes saberes.  Disso ela não poderá abrir mão, perseguindo e construindo, por si mesma, o método de cumprimento dessa tarefa.  Ela será menos um corpo de saber, estático e estável, e mais uma dinâmica e continuada reflexão. O oceano para onde correrão os rios de muitos saberes.


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma) e marcos teóricos para seu estudo.


Muitos amigos me têm dito ser relevante, no desenvolvimento das reflexões sobre a norma tecnológica, o apontamento de um marco teórico.
Ocorre que, dependendo da tarefa assumida ao longo das lucubrações, um ou outro conjunto de diretrizes teóricas pode servir de baliza adequada. 

Hans Kelsen

Kelsen e sua teoria geral das normas é, sem dúvida, um marco primacial. Não se pode falar de norma sem pôr, em muitos momentos, como pano de fundo, o pensamento lógico-jurídico de Kelsen. Seu fundamento teórico é relevante, principalmente, para caracterizar o comando tecnológico como norma jurídica. Embora a constatação possa ser tomada como um axioma, pelas muitas evidências de sua existência,  é possível demonstrar que a norma tecnológica ostenta, em sua abstração, os elementos característicos da norma jurídica que Kelsen tão bem enunciou. Em termos ontológicos, portanto, Kelsen é, a meu ver, uma baliza imbatível. 

Hans Kelsen
Na sua Teoria geral das normas[1], no primeiro item do capítulo 1, o saudoso cientista diz que, com esse termo, se designa " [...] um mandamento, uma prescrição, uma ordem. Mandamento não é, todavia, a única função de uma norma. Também conferir poderes, permitir, derrogar são funções de normas."

Nas próximas quase 500 páginas da obra, Kelsen desdobra-se para esmiuçar esse ente jurídico, para o distinguir de outros tipos de normas (morais, lógicas) e para lhe dar os característicos próprios.  Mas, no meio dessa profusão de pensares, uma coisa fica assentada desde o item III do capítulo 1: a norma é o "sentido de um ato de vontade."[2] Como a norma dá a entender a alguém (o destinatário) que " alguma coisa deve ser ou acontecer", ela assume uma expressão linguística de imperativo ou uma proposição de dever-ser.  
Acompanhar o desenvolvimento subseqüente do pensamento kelseniano tendo, sob o olhar, o ente norma tecnológica, é intrigante e  desafiador. Mas evidencia que, naquele comando codificado imerso num sistema eletrônico de processamento de ações judiciais, há, sem dúvida, uma norma ou um “sentido de um ato de vontade”.

Klaus Günther

Se, por outro lado, se quiser caminhar na direção oposta, na busca de diferenciais desse ente cuja natureza de norma ficou assentada, então outros pensadores podem servir de esteio seguro para o esforço teórico. A distinção paradigmática que Klaus Günther[3] faz, por exemplo,  entre fundamentação e aplicação de norma, na sua tese de doutoramento, oferece subsídios importantíssimos para demonstrar que a norma tecnológica é norma jurídica, mas uma norma diferente. Notadamente na dimensão da aplicação, a norma tecnológica é absolutamente inovadora. Como norma autoaplicadora, ela espanca do cenário da aplicação aspectos até agora considerados relevantes como os ligados à contextualização  e à não vinculação, além de provocar um deslocamento, na linha do tempo, daquele momento crucial em que o aplicador (que desaparece!) deve definir o “sentido do ato de vontade” (a norma) com o qual será armado o computador. 

Referenciais teórico-tecnológicos

Só é possível entender com clareza esse ente, entretanto, se sua natureza mista, jurídico-tecnológica, ficar evidenciada. Falar em norma autoaplicadora é referir-se àquilo que as ciências tecnológicas denominam de agente automatizado.   Portanto, as teorias ligadas ao desenvolvimento de sistemas precisam ser acionadas - um imenso desafio para os juristas, exatamente assim como as teorias jurídicas são uma provação para os tecnólogos.  Os juristas precisam entender como funciona um programa de computador - não é necessário mergulhar na prática tecnológica (escrever ifs, whiles...), mas é necessário, ao menos, ir ao  nível em que os sociólogos sistêmicos chegaram.  Luhmann, por exemplo, fala de programa com uma imensa propriedade, embora num nível de abstração elevado. O filósofo Edgar Morin, idem.  

Teoria dos sistemas
Niklas Luhmann

Aliás, a teoria dos sistemas, em muitos e variados momentos, precisa ser acionada. Entropia, neguentropia, dupla contingência, tempo, sentido, comunicação,  clausura de operação, máquina trivial e não trivial, heteroreferência, autoreferência, interpenetração, conexão, autopoiese, estrutura, auto-organização  são muitos dos inumeráveis conceitos da teoria geral dos sistemas sociais, de viés luhmanniano[4],  que exigem reflexão para bem entender e teorizar os sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais - esse amontoado de diretivas tecnológicas, muitas das quais portadoras de conteúdos jurídicos estritos.

Teoria geral do processo

E, é claro, a nossa sempre necessária e,  agora muito pressionada, TGP.

Enfim, esse ente multifacetado- a norma tecnológica - precisa ser estudado à luz de muitos holofotes teóricos.  



[1] KELSEN, Hans. Teoria geral das normas.  Tradução de José Florentino Duarte.  Porto Alegre:Fabris, 1986.  509p.
[2] KELSEN, Hans. Teoria...,, p. 3.
[3] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[4] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di uma teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna:Società editrice il Mulino,  1990. 761p.  Para uma aproximação mais conceitual, é muito útil a obra de meados da década de 90: LUHMANN, Niklas. Introducción a la teoría de sistemas. Lecciones publicadas por Javier Torres Nafarrate. México:Universidad Iberoamericana, 1996. 304p.  


terça-feira, 23 de abril de 2013

A sentença que saiu em 39 minutos. O sentido da lei que vai ao computador (III).



Pergunta que não cala:
 E se esse cliente tivesse ido a um advogado?
Como ele resolveria o problema?


Este post é o terceiro de uma série que tenho denominado de “o sentido da lei que vai ao computador”.  

No segundo post, examinei a questão da aplicação da norma tecnológica, tentando chamar a atenção para o fato de que daí emerge um elemento ôntico[1] relevante para a diferenciação da norma tecnológica.  Inclusive com uma ilustração onde inverti a direção da seta que liga norma e fatos para o caso da norma tecnológica.  Numa aplicação típica de norma jurídica, os fatos se refletem sobre a norma legal no esforço de apuração do sentido da lei que será aplicado (discurso de adequação). O aplicador, à luz dos fatos e sob consideração de todas as características relevantes da situação, ajusta a norma para que o resultado seja compatível com os fins do Direito.  No post, tentei demonstrar que a norma tecnológica, que é um agente automatizado, tem o poder de inverter esse movimento de reflexão (no sentido de refletir-se sobre, influenciar...) e, muitas vezes, diante dela e sua inflexibilidade, os fatos precisam ser ajustados, até mesmo para obter acesso e giro do sistema processual.
Muitas vezes é preciso trabalhar os fatos para
ganhar acesso ao sistema processual.

Poucos dias após a publicação do post, surgiu um exemplo vivo na Vara do Trabalho de Pontes de Lacerda, que utiliza o PJe-JT, conforme notícia amplamente divulgada pelo TRT da 23ª Região. A notícia parece comprovar o afirmado no segundo post da série.  Veja-se muito sumariamente:

1. Um empregado foi à vara sem advogado; levou o termo de rescisão homologado, demonstrando dispensa sem justa causa; alegou que o Sine se negou a inscrevê-lo para receber seguro-desemprego porque não tinha comprovante de escolaridade (exigência da lei 12.513/11); tempos depois, quando finalmente logrou obter o aludido comprovante e retornou ao órgão, o prazo de inscrição já havia vencido e o interessado teve o pedido negado novamente; pedia, agora,  na Justiça,  o acesso àquele benefício legal.  A secretaria da vara distribuiu a ação com pedido de alvará judicial que determinasse a habilitação no seguro-desemprego.

2. A notícia continua: “ O atermador assentou no termo, que precisou da orientação do gabinete do juiz auxiliar da Presidência do Tribunal, que coordena o PJe-JT, uma vez que o sistema não prevê ações de jurisdição voluntária (quando não existe parte ré no feito). A orientação foi no sentido de colocar a Caixa Econômica Federal – CEF, no pólo passivo, apenas para viabilizar a distribuição.” [sem grifos no original]

3. A juíza que recebeu a ação, diz a notícia,  “ [...] primeiramente se referiu à questão da colocação da CEF no pólo passivo da ação e, julgando-a parte ilegítima, extinguiu o processo com relação a ela sem adentrar no mérito.” Depois, “ [...]  deferiu o pedido determinando que a própria sentença servisse de alvará judicial  [...] “.  (Processo 0002067-23.2013.5.23.0096)

Não vêm ao caso, aqui, os aspectos jurídicos envolvidos. Interessa sim verificar que, diante do sistema processual eletrônico (o PJe-JT),  as normas postas diante dos operadores - e que são processuais por inúmeras razões, além do simples fato de se postarem como óbices ao exercício do direito público de ação - exigiram que os fatos ganhassem contornos absolutamente inusitados. Destaco apenas duas coisas, embora eu tenha pensado em mais de uma dezena delas:

1) A CEF ganhou, sem saber,  transitório status de ré e serviu para “iludir” o sistema processual e

2) A inépcia da inicial, que levaria à extinção do processo sem julgamento de mérito (parte única manifestamente ilegítima conforme reconhecido pela sentença), não impediu se expedisse sentença com força executiva.

Ou seja, para ter seu pleito levado à mesa de um juiz (devido processo legal - direito fundamental), o trabalhador dependeu do esforço concertado de inumeráveis servidores e magistrados que, sabedores dos meandros do sistema processual eletrônico, puderam dar aos fatos a forma necessária para que o sistema “rodasse” (se dispusesse a dar tratamento à pretensão). A rigidez da norma tecnológica influenciou a descrição dos fatos, sem dúvida.
 
Pergunta que não cala: e se esse cliente tivesse ido a um advogado? Como ele resolveria o problema?



[1] No sentido heideggeriano de referência ao “da-sein”. Ôntico não é tomado como sinônimo de ontológico.  

domingo, 21 de abril de 2013

Code is law! Será? Advogados e cientistas devem "ligar-se" diante do tecnológico

Você está sendo dominado
 pelo computador?

A conhecida afirmação de Lawrence Lessig[1] - code is law! -  tomada acriticamente, condiciona muitos comportamentos, tendo em vista o desconhecimento dos “mistérios” tecnológicos pelos juristas. 
  
No corre-corre de todo dia, diante do processo eletrônico, a primeira urgência dos advogados, por exemplo,  é descobrir o botão a ser apertado, o campo a ser preenchido, o caminho a ser seguido, para fazer a petição da hora.  Os juristas, de forma geral, acham-se sem tempo para avançar pela seara tecnológica, entender o fenômeno da softwarização, que está dominando tudo, e ganhar condições de criticar tal assertiva.

Pois bem... Utilizemos o "botão" para representar todas essas urgências diárias impeditivas de um mergulho mais fundo na teorização do mundo virtual em que estamos imersos. Os prazos são inimigos da perfeição. Sempre foram. Sob a pressão costumeira, entre salas de audiência e escritório,  não há tempo para questionar ou muito pensar. Fazer é preciso.


Mas, ao menos em algumas instâncias especializadas - e a OAB deve desempenhar um papel fundamental nisso! -, é necessário que os advogados comecem a se perguntar se: 

(a) este botão deveria estar aí? 
(b) por que este botão está aí? 
(c) quem botou este botão aí? 
(d) há base legal para este botão estar aí? 
(e) quem e como decidiu que este botão deveria estar aí?
(f) quem pôs o botão aí obedeceu com rigor a determinação dada de colocar o botão aí?

As questões não se referem ao design, é óbvio, ao look-and-feel, à aparência ou à usabilidade, embora esses sejam aspectos importantes também. Elas se reportam ao jurídico.

Essa forma figurativa de exprimir os dilemas e perplexidades de todo dia são um ingrediente indispensável da evolução atual para o processo eletrônico, para que ela ocorra de forma jurídica. E para que se possa afirmar, aí sim, que code is law

O espírito curioso e inquisitivo do advogado - que faz parte do perfil típico desse profissional - deve "ligar-se" diante do tecnológico. Não se pode, simplesmente, aceitar que "código é lei" (code is law). Ou que "código é Direito", que é a tradução mais acertada para a expressão consagrada de Lessig. É bom esclarecer que code, nesse contexto e continuando com a figura inicial do botão, significa "instrução de computador", uma regra codificada que o computador interpreta e cumpre, colocando na tela um "botão" (ou uma exigência qualquer) que deve ser apertado. Code, nesse juízo assertivo, é o  código que legitimamente providencia o botão na tela. Eles  - o código e o botão - representam todos os óbices, dificuldades, facilidades e exigências que  amarguram o advogado, no dia a dia, na operação do sistema eletrônico. Ou o juiz, naquele momento em que deve arranjar um jeito de fazer o processo andar, apesar de o botão necessário e óbvio estar ali mas não produzir exatamente aquele resultado esperado. code é o que está por trás e que realmente produz o visível, o botão. O code é a norma tecnológica.

Essa postura crítico-reflexiva vai expor as muitas intransparências e opacidades  do esforço em curso, no país, para implantar o processo eletrônico,  e dará fundamento para reivindicações de transparência,  abertura e cobranças de condução dos processos segundo os ditames do devido processo (technological due process[2]). 

Pois é... falando para os cientistas, a proposta desse blog  é que a ciência do direito precisa assumir isso (que o código é ou pode ser Direito, ou não!), validar isso, e passar a construir seus arcabouços contemplando esse novo "tijolo" - a norma tecnológica.

A meu ver, isso não tem acontecido. O "code" está precisando ser visto como Direito, dentro do nosso pensar de orientação euro-continental e segundo nosso modo de fazer ciência, com suas especificidades, mas com incorporação ao jurídico com a unção das qualidades que tornam certas regras Direito.

A percepção desse tipo normativo novo - com suas imensas peculiaridades (não interpretação na aplicação, vinculação, prévia-interpretação, deslocamento temporal e espacial das decisões, abandono da ideia güntheriana de situacionalidade no discurso de adequação, generalização/centralização de foro...) -  torna evidente que, ao contrário do que alguns ainda pensam, a tecnologia impacta profundamente a vida do Direito e do processo. A ponto de exigir uma evolução da própria ciência. 

Para o "code" ter acolhida sua pretensão a ser Direito sob a ótica da ciência que, é claro, vai especificar os caminhos para tanto, as reflexões em torno dessa nova espécie normativa parecem-me muito relevantes. 

A Ciência deveria abrir-se para o estudo da norma tecnológica - este ente híbrido jurídico-tecnológico - e os advogados deveriam entendê-la para fazer o que fazem todos os dias diante dos textos legais: escrutiná-los frente à Constituição e a lei.

Num cenário assim, poder-se-ia, sim, passar a trabalhar com a presunção relativa de que code is law.   



[1] LESSIG, Lawrence. Code. Disponível em:  http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf. Acesso em: 18 abr. 2013.
[2] Conforme a expressão utilizada por CITRON, Danielle Keats. Technological due process.  Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1012360. Acesso em: 18 abr. 2013. 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma): o sentido da lei que vai ao computador (II)


Em meu último post, parti da caracterização kelseniana da norma como o "sentido de um ato de vontade do legislador", para evidenciar que a norma jurídica, em geral,  é o produto da ação, primeiro, do legislador e, depois, do intérprete:

Ato legislativo de manifestação de vontade-> expressão linguística -> sentido da expressão linguística (norma) -> aplicação.  O intérprete parte do texto legal, apura a norma e a aplica.

No caso da norma tecnológica (eNorma), o intérprete não a aplica. Ele define o sentido da expressão linguística - a norma - e orienta a transformação desta norma num "ente autoaplicador", num agente automatizado, numa "norma viva".  Para isso, a norma precisa ganhar expressão tecnológica para ser entendida pelo computador e ser executada.  Ela é transformada num programa, num software.

A expressão linguística da norma tecnológica, portanto, não é feita com a linguagem natural humana, mas numa linguagem técnica.  E, uma vez escrita em tal linguagem, não é mais passível de interpretação. Ela é uma interpretação "viva" da lei, que se autoaplica. Entre essa expressão "escrita tecnologicamente" da norma e sua aplicação não há mais qualquer intervenção humana (interpretação). Nesse sentido, ela é uma interpretação "terminal", final, fixa e imóvel (salvo se for reescrita), traduzida numa estrutura dura e insensível, imersa num sistema eletrônico.



Fica evidente, então,  que, no esquema tradicional "ato legislativo -> expressão linguística -> fixação de sentido", há uma abertura permanente para a mobilidade. O juiz, a câmara, a realidade, a situação, tudo impacta a fixação do sentido (norma) que  será aplicado.  O hermeneuta atua como um flexibilizador/ajustador do sentido (ou seja, da norma) para promover, mediante adequações, tanto a mobilidade do ordenamento jurídico para ajustá-lo à evolução da realidade,  como para promover a contextualização (situacionalidade) necessária para dirimir com justiça a situação concreta.


No caso da norma tecnológica, considerando-se que ela já é "um sentido" que se vai autoaplicar (inserido no sistema para se autoaplicar), não há essa mobilidade. Ou, ao menos, não há com o mesmo alcance.  Qualquer alteração deverá passar por uma "reescritura" do sentido no âmbito do sistema, no programa, algo sempre muito delicado e difícil. Uma coisa é fazer considerações para o magistrado e chamar atenção para os detalhes que exigem, no caso, um tratamento especial. Outra, muito diferente, é batalhar pela reescritura de um programa de computador porque determinada hipótese (e todos os dias e em todos os casos temos novas hipóteses) não foi prevista e programada. 


Quando se pensa apenas no processo - detalhes processuais -, tende-se a minorar as consequências dessa constatação, apesar do erro dessa minoração.  Mas quando se considera o avanço para áreas mais sensíveis, em que se deferem ou indeferem direitos materiais - como ocorre com os sistemas de gestão de benefícios que Danielle Keats Citron estudou no Estados Unidos - percebe-se o alcance funesto dessa nuance. 

Num enfoque amplo, portanto, e não reducionista, vê-se que há relevantes decorrências dessa constatação. O Direito está preparado, há séculos, com procedimentos próprios e inumeráveis mecanismos para promover a aplicação justa da norma. Um intérprete aplicador humano, juridicamente estabelecido e preparado, tinha (digo no passado, porque as coisas estão se transformando rapidamente!) a função primacial de, considerando o ordenamento jurídico e a situação a solver, evitar que resultados incompatíveis com o Direito fossem produzidos. 

A norma tecnológica altera isso tudo. A autoaplicação (aplicação automatizada) considera superficialmente as características da situação. E as considera apenas e até os limites postos no programa, ou seja, até onde foram a imaginação do intérprete e do programador no exercício de antevisão (previsão) típica da atividade tecnológica.  

O caso concreto é confrontado com a estrutura programática, estática,  posta no sistema. A situação fica pior quando se tende a buscar um modo de apresentar o caso (conformar!) segundo as exigências do programa. 

Há, no caso, uma inversão completa  do sentido da ação reflexa que caracteriza a aplicação jurídico-humana da norma. Num discurso de adequação típico, o juiz trabalha a norma, dando-lhe feições próprias para bem resolver a situação que está posta para solução. 

Diante de um programa de computador, ou seja, de uma norma fria e anódina que se autoaplica, ocorre exatamente o inverso. Como a norma não é passível de ajuste para bem contemplar a situação e todos os seus sinais característicos, busca-se uma descrição dos fatos que se adapte à configuração algorítmica da norma. A norma reflete-se sobre a descrição dos fatos  e não os fatos sobre a norma, como recomendam os hermeneutas para deslindar com imparcialidade e justiça um caso concreto.

E não há alternativa. Ou se apresentam as coisas segundo as exigências da norma autoaplicadora, ou não se obtém a execução do programa. 



segunda-feira, 25 de março de 2013

Legitimação da norma tecnológica (eNorma) e Klaus Günther: o PJe-JT e outros SEPAJs.

Já finalizando sua tese de doutoramento defendida frente à Faculdade de Direito de Frankfurt, Klaus Günther afirma:

“Uma comunidade política trata dos seus membros de modo desleal quando aplica as regras e os princípios estabelecidos de um modo que, mesmo consistente, seja de fato arbitrário.”[1]

Naturalmente, na sequência, Günther apresenta inúmeros argumentos para justificar a afirmação, todos eles condições  para garantir que a aplicação de regras e princípios não se fará de modo arbitrário, algo incompatível com a ideia de Direito.  

Fortemente inspirado em Dworkin e em Habermas - cujos pensamentos, no particular, ele considera próximos -  Günther põe muita força ao afirmar que " [...]  no âmago, direitos são de natureza moral, portanto, inacessíveis à alteração positivadora" [2].  Ou seja,  somente sob inspiração moral-universalista (e vale lembrar o princípio de universalização U, tão marcado por Habermas), com a consideração ampla dos interesses de todos os envolvidos,  a aplicação de regras e princípios pode ser feita de modo consentâneo com os objetivos do Direito. 

Ora, contra tal panorama teórico,  é preciso reconhecer que a aplicação de regras e princípios processuais, no caso do processo eletrônico brasileiro, tem sido feita, muitas e variadas vezes, de forma que parece se aproximar do que Günther classificaria de arbitrária. 

Ousa-se afirmar isso porque, apesar do consistente esforço para aproveitar as inovações tecnológicas para o bem do processo - hoje inegável da parte do CNJ e dos conselhos superiores -, parece faltar, em muitos momentos, na implementação do processo eletrônico,  a necessária consideração dos interesses de todos no decidir e no implementar o decidido. Daí termos falado, entre as regras estratégicas para o avanço para um processo eletrônico consistente e legítimo,  da regra da legitimação [3]. 

Muitas "surpresas" têm sido trazidas à divulgação, acompanhadas de críticas, seja por advogados, seja por juízes e outros usuários, na utilização do sistema processual eletrônico. Ora, as surpresas denotam, exatamente, essa falha de legitimação (o amadurecimento prévio e universalizado das implementações tecnológicas), que é acentuada, em muitos casos, pela ausência de  transparência. O sistema processual - que é um amálgama de normas técnicas e normas jurídicas tecnologicamente expressas (normas tecnológicas - eNormas) - realmente parece ser alterado, inumeráveis vezes, sem a discussão prévia das inovações.   

Advogados e juízes são os mais impactados por essa carência  e as infindáveis críticas assestadas contra a tecnologia e sua incorporação ao processo tornam evidente que, finalmente, advogados e juízes estão começando a entender a extensão da renovação que a tecnologia produz na vida do Direito.

O Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, presidente do TST, tem demonstrado grande sensibilidade para ouvir os envolvidos e balancear o avanço das inovações (cuja necessidade não é posta em dúvida) com as condições de realidade (técnicas e temporais) para implementá-las.  Isso reflete um avanço efetivo na direção de uma incorporação legítima da tecnologia na vida do Direito e do processo.



[1] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. p. 409.

[2] GÜNTHER, Klaus. Teoria.., p. 410. É preciso lembrar que Günther, na esteira do neo-constitucionalismo, reconecta diretamente Direito e Moral, ao contrário do que fizera o estruturalismo formalista kelseniano do princípio do século.

[3] Ao tratar das três regras básicas, jurídico-estratégicas,  para um avanço consistente para o processo eletrônico, escrevemos:  "norma tecnológica deve ser estabelecida por mecanismos abertos, democráticos e institucionalizados;  abrir os códigos-fonte deve ser apenas uma fase terminal de um processo que, pelo que representa de ameaças aos direitos fundamentais processuais, deve começar pela definição da norma que se vai converter em código-fonte".