segunda-feira, 22 de julho de 2013

A eNorma e o computador ‘boca da lei”: regras da automação consciente, da legitimação e da transparência plena (I)

Será que o avanço tecnológico vai propiciar, em alguma medida,  a concretização do
antigo e malfadado sonho do “juiz boca da lei”?

Se automatizar é, por definição, transferir uma atividade humana para um “agente automatizado”, então automatizar o processo é, sem dúvida, colocar o computador, em muitos e variados momentos, a aplicar a lei (tomada em sentido amplo). Do “logar-se” ao sistema eletrônico até o controle de prazos, passando pelas inúmeras exigências postas pelo sistema para a prática dos atos processuais, vê-se que interlocutores humanos estão sendo substituídos por agentes automatizados. Há, mesmo, quem reacenda as ideias de automatizar o processo não apenas no âmbito formal, como tem ocorrido até agora nos sistemas processuais,  mas no mérito[1]. Alguns tendem a postar-se contra esse movimento de automação como se fosse imanentemente ruim automatizar os atos. Não parece o caso.  Principalmente no processo, há muito espaço onde o computador pode dar contribuições ímpares.

Os compreensivistas sempre se preocuparam com o fator  incontrolável posto entre a proposição linguística (a lei) que sai do legislador e o sentido em que ela é tomada para aplicação[2]

Segundo a visão dos positivistas, e mais ainda para os que cultivam visões instrumentalistas do Direito, esse fator incontrolável no trajeto de especificação da norma jurídica tornou-se um pé-de-aquiles do Direito.  É inócuo instituir um bom procedimento, por exemplo, dizem eles, se, no final, tudo desanda nas mãos manejadas monologicamente pelo intérprete. As visões da sentença como vontade da lei, do intérprete ou de ambos transitam por tais pensares. E o esvaziamento do silogismo, como garantia lógica de decisão calcada nos fatos, ficou reconhecido. Nem mesmo os sonhos habermasianos de verdade a posteriori, como construção coletiva no âmbito do processo, parecem vencer essa irremediável (e inexorável) tendência para a incertidumbre jurídica. O juiz “boca da lei”[3] sempre foi tido como um sonho para ser perpetuamente sonhado e jamais realizado. Felizmente, parece-me. 

Na tentativa “do dispor e fazer acontecer” do legislador,  a Escola da Exegese preconizava caminhos rígidos de aplicação da norma.  Tudo, sempre, para que o intérprete não ficasse à vontade para impor, pela via espúria de uma interpretação de conveniência, sua vontade. Afinal, dizem alguns, interpretar é perverter a lei (Gadamer?).

Se se faz uma leitura superficial de Legitimação pelo procedimento, Luhmann[4] parece entregar os pontos ao denunciar que o procedimento legitima tudo. E, temeroso,  preconiza ao menos o estabelecimento de mecanismos para minorar a influência dos papéis externos do julgador. 

Alexy e Günther[5] sugerem, claramente,  a necessidade de uma lógica de aplicação. 
E esses, mesmo preocupados com os eventuais desvirtuamentos, tentam demonstrar que, sem a atuação do intérprete,  o Direito tem de abrir mão de sua pretensão de Justiça. Não é possível um Direito que não contextualize a aplicação da força, que não se tempere diante dos fatos e onde o discurso de adequação (construção maior do intérprete) seja expurgado. Sem adequação não há justiça (?!?) na decisão.

De qualquer jeito, e diante desses vários exemplos,  desde Napoleão e seus desejados "juízes bocas da lei" até os pós-positivistas, dos tempos da Nova Hermenêutica, sempre houve preocupação com o fenômeno da "interpretação".  Ela é parte da dinâmica do sistema jurídico. 

Na nova realidade justecnológica em que estamos entrando de cabeça, este zelo, agora, terá de lidar com a eNorma. Seu manejo exige a atenção dos juristas porque, como se disse em post anterior, a eNorma quebra o espaço jurídico de aplicação normativa em dois: uma parte flexível,  em que remanesce a interpretação e  a humanidade, e outra parte rígida e trivial, a parte  da eNorma, em que prevalece a frieza tecnológica e onde se esfumaça o discurso de adequação.

Verifique-se que  os tamanhos desses espaços tendem a alterar-se. Ao menos no processo, há ainda uma preponderância avassaladora dos “espaços humanos”. Mas os espaços de não flexibilidade estão em expansão.  E tais espaços, plenos de automação,  concretizam, de alguma forma,  o velho e inalcansável sonho do “juiz boca da lei”. De alguma forma, é importante dizer, conforme pretendo demonstrar num próximo post.  

A eNorma, pela sua marcante característica da autoaplicação, traz à luz o “computador boca da lei”. Uma vez programado, o computador, porque não interpreta, cumpre à risca os comandos dispostos por quem o programou.

Daí a razão pela qual as estipulações das eNormas devem ser cercadas da maior transparência, do maior zelo e da máxima participação dos envolvidos. As pessoas devem (i) estar muito bem informadas quanto ao que significa a automação e sobre os imensos benefícios que pode proporcionar aos procedimentos de adjudicação do Direito (regra da automação consciente); (ii) ter canais institucionalizados para participar da definição das regras que serão objeto de codificação tecnológica (regra da legitimação) e (iii) poder assegurar-se de que a função informática em operação corresponde, de fato, às regras  fixadas com sua participação (regra da transparência plena)[6].

Sob tais condições, nos espaços em que o computador pode auxiliar na aceleração do processo, toda contribuição tecnológica deve ser bem recebida e adotada.



[1] Na UFPR, há um grupo de estudiosos, de inquestionável gabarito,  que tem posto atenção nessa ideia.
[2] Conforme a visão que Kelsen lançou e sustentou durante toda a vida (da Teoria Pura à Teoria Geral das Normas).
[3] Conforme a expressão consagrada por Montesquieu la bouche de la loi.
[4] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília:UnB, 1980. 210p.
[5] GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[6] Conforme disposto no item 7 de meu artigo de 2012






sexta-feira, 19 de julho de 2013

Direito nômade: desembargador de MG apresenta tese de doutoramento

Temos todos, hoje, às 16h30, a oportunidade única - agora viabilizada pela internet - de assistir à apresentação da tese de doutoramento do Des. Federal do Trabalho de Minas Gerais  - o Doutor José Eduardo Chaves Jr.- uma figura reconhecidamente comprometida com o avanço da tecnologia no âmbito jurídico e com a teorização desse amálgama Direito+Tecnologia. 

Aos que puderem assistir, minha especial recomendação. Abaixo encontram-se as informações necessárias para assistir ao evento, na mensagem convite expedida pelo palestrante:


Amigos,
Hoje iremos apresentar nosso trabalho de doutorado. Um primeiro passo teórico, e nômade, um mero experimento para tentar substituir a 'imputação' de Kelsen, pela 'conexão' de Deleuze.

No século XXI, o direito está a cada dia mais desterritorializado, mais mutante, mais sujeito ao pluralismo jurídico.
A pirâmide kelsenena respondia bem ao cenário do início do século passado, do experimentalismo lógico, do individualismo e da prevalência do direito nacional.

O direito vem a reboque da prática. É preciso começar a pensar, teoricamente, o que a realidade virtual, a e-democracia e os fenômenos de rede já começam a nos impor.

A tese foi orientada pelos Professores Rafael de Asís Roig (Filosofia do Direito) e Antonio Baylos (Direito do Trabalho), ambos Catedráticos na Espanha.

Haverá transmissão on line por internet.  Horário: 16:30 horas.

A interação com perguntas e observações será possível via Twitter( @pepechaves ) ou por e-mail  ( pepe.chaves.1@facebook.com )

Link da transmissão: 
http://www.tvtrtmg.com.br/site/index.php?p=aovivo/&canal=1
Link da noticia:  http://as1.trt3.jus.br/noticias/no_noticias.Exibe_Noticia?p_cod_area_noticia=ACS&p_cod_noticia=9117 "




__._,_.___"

terça-feira, 16 de julho de 2013

eNorma e direito fundamental à transparência tecnológica

Transparência: o direito de olhar,
ver e entender
Em artigo do final de 2012, lançamos duas ideias básicas referentes ao reconhecimento da existência da eNorma (norma tecnológica) e à necessidade correlata de estabelecer padrões de transparência a respeito.   Entre outras coisas, no artigo,  (i) constatou-se a chegada das novas tecnologias da informação e da comunicação ao processo, (ii) passou-se pelo exame do impacto de uma delas – o software - num fenômeno  referido como softwarização do processo,  (iii) evidenciou-se o surgimento da nova categoria científica processual - a norma tecnológica ou eNorma - e (iv)  chegou-se à sugestão de enunciação e constitucionalização de um novo direito fundamental  à transparência tecnológica.  

Pelas circunstâncias do momento, usou-se o processo e sua informatização para demonstrar a urgência de explicitar esse direito fundamental à transparência tecnológica[1]. Mas, na verdade, tal direito  tem sido ventilado e justificado, num âmbito mais geral, e se faz necessário diante do avanço das tecnologias em todas as áreas de egovernança.

Em 2007, nos Estados Unidos, Danielle Keats Citron, professora assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Maryland/EUA,  desenvolveu um extenso trabalho de pesquisa e compilação, reportado em artigo sob o título technological due process[2], enfocando a atuação das agências administrativas e suas práticas automatizadas. A pesquisa concentrou-se nos chamados BMSs (Benefits Management Systems) norteamericanos e os incontáveis exemplos presentes naquele estudo demonstram o impacto, os problemas e as dificuldades da automação dos processos de adjudicação dos benefícios. No Brasil, o projeto do novo código de processo civil  reconhece a presença das inovações e os teóricos falam, aqui também, do devido processo tecnológico.

Por outro lado, parece estranho voltar à carga com a questão da transparência, uma vez que, em 2011, no Brasil, a lei 12.527 tratou do acesso à informação, sob discurso estribado fortemente na ideia de transparência. Aquela lei, entretanto,  acrescentou pouco à disciplina processual, toda ela permeada, desde a base, pela publicidade.  Por incrível que pareça, o legislador, em tão extenso e minucioso documento, não se ocupou adequadamente das novas tecnologias da informação (TIs), colocando sua incorporação, clara e expressamente, sob as luzes da transparência.  Nesse especial aspecto, a lei poderia ter efetivamente inovado para o processo, que está sendo invadido por essas tecnologias, mas não o fez.

O que se quer dizer é que o legislador ocupou-se dos dados e, pela via da facilitação do acesso a eles, buscou cercá-los da necessária transparência.  Perfeito? Nem tanto. 

Num mundo dominado pelas tecnológicas da informação, onde o acesso ao dado é sempre mediatizado (não se consegue ler nada diretamente, dependendo sempre de uma ferramenta!), parece claro que a própria ferramenta deve ser alvo dessa “prescrição de transparência”.  

Como demonstra o artigo de 2012, quando se aprofunda o fenômeno da softwarização e os sistemas vão além da mera recepção e do manejo dos dados para exibi-los, ocupando-se, também, de muitos aspectos anteriormente entregues a humanos (automação, agentes automatizados...), a questão da transparência ascende a nível superior. Pode-se estar diante das normas tecnológicas (eNormas) e saber, em linguagem clara e acessível, como foi determinado e codificado o programa com o qual todos irão interagir é um direito fundamental.  Saber por que, onde, quando,  por quem  e, notadamente, como o agente automatizado de interação está determinado para agir parece, sem dúvida, ser um direito dos usuários dos sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais (SEPAJs).




[1] Entende-se que este assunto merece um tratamento geral, com fundamentos ampliados. No artigo, fechou-se o foco no processo judicial e explicitou-se o direito fundamental geral como um caso particular para o processo. 
[2][2] CITRON, Danielle Keats. Technological due process. Washington University Law Review.  St. Louis, v. 85, p. 1249, 2008.  O paper está disponível em: http://ssrn.com/abstract=1012360. Acesso em: 25 jun. 2012.