Características da Norma Tecnológica(eNorma)


Independentemente de controvérsias ideológicas ou políticas, afirma-se ser necessário reconhecer o surgimento de uma nova categoria da ciência jurídica: a norma tecnológica. A Teoria Geral do Processo, por exemplo,  só tratará adequadamente do processo eletrônico se admitir a existência dessa nova categoria científica.

Kelsen fincou as raízes da teoria do Direito em torno das normas. Herbert Hart avançou  para uma primeira subespecificação normativa. Ronald Dworkin realçou e incorporou os princípios como normas. A nova realidade processual está ajudando a desvelar a norma tecnológica. Ela está presente no dia a dia do Direito, serve ao Direito, mas continua uma incógnita para muitos juristas.

Por enquanto, no âmbito judicial,  seu conteúdo é mais o regramento formal (normas processuais). Em outros âmbitos, a norma tecnológica já contém muito conteúdo substancial, o que também poderá ocorrer no processo judicial.

No caso do processo eletrônico, por exemplo, a norma tecnológica é a norma que foi levada à codificação, ou seja, a interpretação da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual.

Para os hermeneutas, a norma tecnológica apresentar-se-á como não interpretável na aplicação e, por isso e muitas outras características, exigirá profundas considerações.

A norma tecnológica será um novo critério para separar os códigos-fonte em dois subconjuntos: normativos e não normativos ou jurídicos e não jurídicos. Os normativos devem ser inerente e essencialmente transparentes, abertos, não sujeitos à confidencialidade, públicos. O acesso aos mesmos deve ser erigido a direito fundamental processual.

A norma tecnológica põe em xeque o vetusto paradigma da escola realista de que o Direito é o que os juízes dirão que ele é ao julgar. Essa dicção passa a preceder  o caso concreto e situa-se, em termos de situacionalidade,  num âmbito quase tão geral e abstrato quanto o do legislador.  Ela elimina o famoso discurso de adequação, que costuma ser  entregue ao prudente arbítrio do juiz.

Por esse caminho, a norma tecnológica pode ser uma via aberta para a desjuridicionalização (terceirização?) da atividade jurisdicional. Na verdade, quando se faz um software, transforma-se numa estrutura informática (programa) determinada visão interpretativa da norma aplicável naquele momento/ato.

Se um programador define o entendimento normativo a codificar, está “surrupiando” o poder (competência) de alguém que fez concurso, tomou posse e comprometeu-se, sob juramento, a tomar tais decisões sob inspiração de princípios como o da ampla defesa. 

Mesmo que haja um “comitê”, como está na moda, para definir a interpretação da norma a ser cristalizada no sistema, ocorrem dois fenômenos evidentes:
(i) há um deslocamento da decisão para fora dos autos (sai das mãos do juiz a decisão a respeito) e
(ii) talvez a definição normativa advenha de pessoas que nem sequer são juristas[1].

Como informa Danielle Keats Citron, reportando-se às constatações feitas em pesquisa em torno dos sistemas de gestão de benefícios, nos EUA,   “the computer programmers made new policy by encoding rules that distorted or violated established policy”[2].

A norma tecnológica tem um caráter implícito, mas muito forte,  de  vinculação. Todo processo será conduzido, naquele particular aspecto, daquela maneira. Evidencia-se aí, com toda força, a rigidez estrutural introduzida pela softwarização, pois o programa de computador é  lógico-formal, binário, causal.  O Direito é lógico-modal, deôntico.    

A norma tecnológica destrói os espaços da textura aberta, no sentido de Herbert Hart. Mais que em qualquer outra linguagem, na tecnológica “[...]  há um limite, inerente à linguagem, quanto à orientação que a linguagem pode oferecer.” [3]   A codificação tecnológica da norma exige a eliminação da possibilidade da escolha - exercício da faculdade de julgar -  no fechamento do silogismo de aplicação do Direito.

A norma tecnológica  é a expressão da rigidez estrutural dos códigos. Luhmann faz pertinente advertência sobre as estruturas:  “el código no ofrece ninguna posibilidad de adaptación del  sistema a su entorno.”[4] Isso afirmado numa perspectiva operativa da estrutura,  não evolutiva, que aliás é a que aqui interessa, pois num horizonte de evolução a adaptação está sempre envolvida.

A inflexibilidade ou não elasticidade da norma tecnológica desafia a característica que Tércio Sampaio Ferraz Jr.[5]  destaca, na esteira de Hart, para o âmbito decisório: “ [...] casos há em que o decididor (o juiz, o funcionário administrativo) é convocado a decidir através de avaliações próprias, assumindo papel análogo ao do próprio legislador [...]  fala-se, assim, em conceitos indeterminados  [...] ”.  Diz ele que  “ [...] supõe-se que uma clarificação, por parte do decididor, no momento de aplicação da norma, seja necessária.” 

A norma tecnológica, portanto, pelos seus atributos característicos, constitui-se em categoria normativa específica, que  põe em cheque consagrados aspectos teórico-jurídico-processuais.



[1] MURPHY, Mark c. Philosophy of Law…, p. 69-70: “Ser juiz é ser designado pelas regras como alguém cujas aplicações das regras daquele sistema, ou alguma das regras daquele sistema, é considerada autoritativa. Você poderia ser extraordinariamente bem informado sobre o direito na sua sociedade,  sobre os casos que estão em disputa, e sobre os fatos relevantes que precisam ser considerados; e você pode então ter coisas extremamente inteligentes a dizer sobre como tais casos deveriam ser entendidos. Mas falta-lhe o poder de decidir os casos  [...] “. [tradução livre]
[2] “Os programadores de computador fizeram novas políticas ao codificar regras que distorceram ou violaram as políticas estabelecidas.”  [tradução livre] CITRON, Danielle Keats. Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.   p.  1279.
[3] HART, H. L. A.  O conceito de direito.  Tradução de A. Ribeiro Mendes.  2.ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 139.
[4] LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft).  Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 131003. Disponível em: http://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/00432-el-derecho-de-la-sociedad-niklas-luhmann.html. Acesso em: 10 nov. 2011. p. 133.
[5] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2.ed. São Paulo:Atlas, 1980. p. 96. 

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