domingo, 24 de março de 2013

Norma tecnológica (eNorma): o sentido da lei que vai ao computador (I)


Para entender a norma tecnológica (eNorma) parece ser útil  partir de Kelsen, para quem a norma é o sentido de um ato de vontade[1]. Ou seja, Kelsen distinguia claramente a "expressão linguística" - o texto legal -  e seu sentido.  Para ele, um ato legislativo (manifestação de vontade do legislador) ganha expressão, em primeiro lugar,  pela via linguística. Dito de outra forma,  o legislador tenta perpetuar seu "comando" (expressão de sua vontade) numa  "expressão linguística".   O "sentido" desta expressão linguística é a norma.

Repise-se: a norma não é o texto legislativo. A norma é o sentido em que esse texto é tomado.

Portanto, ATO LEGISLATIVO -> EXPRESSÃO LINGUÍSTICA -> SENTIDO DESTA EXPRESSÃO são três momentos, digamos assim, do nascimento de uma norma. Para quem preferir, pode-se dizer também que esta é a via pela qual se estabelece a norma a ser aplicada.

O sentido (a norma), em geral, é estabelecido pelo intérprete no momento da aplicação. Nessa esteira, os realistas americanos (Holmes) diziam que "o Direito é o que os juízes dizem que ele é", exprimindo a ideia de maneira contundente.  E, na verdade, então, tem-se:
Ato legislativo -> expressão lingüística -> sentido 1 ou sentido 2 ou sentido n. (dependendo do órgão julgador)[2].  

A norma passa a ser o produto de dois atos, então: o de legislar e o de interpretar.   Mas, como fica evidente,  quem dá a palavra final sobre a norma, quem de fato a estabelece, é o intérprete. Para um sistema jurídico como o norte-americano, orientado diretamente pelo princípio da supremacia judicial, essa maneira de ver as coisas é perfeitamente coerente. Para o sistema jurídico europeu continental, fundado no princípio da supremacia parlamentar, não se pode dizer o mesmo.

Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que o sentido da expressão linguística, muitas vezes, descola-se da vontade do legislador. Esta é uma forma de dizer que,  na prática, não corresponde  à vontade daquele que praticou o ato legislativo.   Ou seja, pode ou não ter relação com a vontade do legislador.  Se for permitido dizer, para simplificar o raciocínio,   a "vontade" do intérprete  é a que, afinal, prevalece.  Canotilho e os demais neo-constitucionalistas falam muito em "mobilidade" para exprimir esse mecanismo normativo pelo qual o mesmo texto vai assumindo diferentes sentidos (atualizando-se) pela mão dos intérpretes. Por isso, a hermenêutica teve de virar-se para estabelecer regras de interpretação que garantissem, minimamente, a atuação coerente do intérprete,  para evitar  arbitrariedades e promover a integridade sistêmica (Dworkin e sua ideia de integrity). Günther recorre à ideia de "lógica de aplicação", assim como Alexy e Luhmann. Para evitar as arbitrariedades, torna-se fundamental regrar os mecanismos de aplicação contextual da norma. 

Nesse cenário, exposto de maneira bastante simplificada,  com o qual o mundo jurídico está habituado,   fica evidente que a norma surge "no momento da aplicação" pelas mãos de um "intérprete", em geral um juiz, mas vincula-se a uma "expressão linguística de base” que é interpretada segundo diretrizes aceitas pelo ordenamento (salvo, é claro, no caso dos vazios legais).

Pergunta-se, então: a norma tecnológica encaixa-se nesse figurino? Sem dúvida, parece que sim. Daí justificar-se classificá-la como norma, estando presente nela também o atributo central da norma jurídica (imperatividade).

No entanto, há muitos atributos especiais que justificam sua classificação como categoria jurídica nova e  específica. Um tipo novo de norma jurídica.

Veja-se um primeiro caso, considerando apenas a dimensão temporal.

Atente-se para o momento da interpretação da expressão linguística (texto legal): em geral, esse movimento é feito no momento da aplicação da norma. Ou seja, o aplicador interpreta o texto, extrai seu sentido (a norma) imediatamente antes da aplicação e, então, com aquele sentido (que é a norma), deslinda o caso (julga). Para os teóricos, esse é um momento cuja análise assume contornos riquíssimos, porque há uma atuação da situação sobre o intérprete (reflexividade) que impacta diretamente os contornos que a norma assume. Para Günther,  a “adequação da norma" para solucionar com justiça o caso concreto em exame exprime-se num índice de "situacionalidade" ao qual se vinculam diretamente a imparcialidade e a justiça da decisão.

O esquema tradicional, portanto, também pode ser expresso assim:

Ato legislativo -> expressão lingüística  -> definição contextual do sentido (norma), quando o aplicador leva em conta a expressão lingüística e a situação concreta que tem para decidir, com todos os seus sinais característicos relevantes.

Ora, a norma tecnológica é claramente "pré-interpretada" (pré-apurada), no sentido de ser previamente estabelecida para solucionar situações concretas que ocorrerão no futuro e que não terão a oportunidade de "atuar reflexivamente" para conformar a aplicação. Sinais relevantes não previstos serão totalmente desconsiderados.

O intérprete atua, é verdade, para fixar a norma tecnológica. Mas essa atuação não é feita diante de uma situação concreta e suas "perístases", diante de seus sinais característicos. Muito pelo contrário.

Ele pode até fazer um exercício de antevisão mais profundo que o do legislador, trabalhando num nível de especificação semântica mais rico e detalhado. Mas, definitivamente, a norma é definida sem aquele contato do intérprete com a real situação a ser deslindada. Os sinais característicos da situação são estabelecidos num nível de abstração (e de antevisão) quase tão longínquo quanto o do legislador. Lembre-se, aqui, de Hart e sua ideia de "textura aberta", com a qual o legislador parece reconhecer a necessidade da aplicação contextual e impregna os textos normativos com termos que abrem o caminho, amplamente, para a atuação do intérprete.

Esse sentido do texto legal (a norma), estabelecido para deslindar as situações jurídicas previstas (imaginadas como de ocorrência possível no futuro)  e que ganha expressão tecnológica, incorporando-se a um sistema eletrônico, é a norma tecnológica. Veja-se que, partindo da expressão lingüística em linguagem natural, apura-se um sentido que é escrito em linguagem tecnológica (algoritmo) - linguagem própria para ser compreendida por uma máquina - e vai determinar o comportamento do sistema eletrônico quando se apresentar exatamente uma daquelas situações antevistas pelo intérprete.

Define-se, hermeneuticamente, um sentido (norma) que se transforma num ente “autoaplicador”, num programa de computador que, automaticamente, vai se autoaplicar.

Desse simples entendimento surge uma miríade de conseqüências teóricas e práticas cujo exame ocupará alguns dos próximos posts.









[1] Esta noção da “norma jurídica” o criador da ciência jurídica manteve viva até morrer. Ela se encontra na Teoria Pura e reaparece, com muita força e em muitos momentos, na Teoria Geral da Normas, sua obra póstuma. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. São Paulo:Martins Fontes, 1996. 427p. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas.  Tradução de José Florentino Duarte.  Porto Alegre:Fabris, 1986.  509p.
[2] Os mecanismos de uniformização da jurisprudência visam reduzir a diversidade de sentidos e as súmulas vinculantes os restringem a um único e inescapável. 

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