Para entender a norma tecnológica (eNorma) parece ser útil partir de Kelsen, para quem a norma é o sentido de um ato de vontade[1].
Ou seja, Kelsen distinguia claramente a "expressão linguística" - o
texto legal - e seu sentido. Para ele, um ato legislativo (manifestação
de vontade do legislador) ganha expressão, em primeiro lugar, pela via
linguística. Dito de outra forma, o legislador tenta perpetuar seu
"comando" (expressão de sua vontade) numa "expressão
linguística". O "sentido" desta expressão linguística é a
norma.
Repise-se: a norma não é o texto legislativo. A norma é o sentido
em que esse texto é tomado.
Portanto, ATO LEGISLATIVO -> EXPRESSÃO LINGUÍSTICA ->
SENTIDO DESTA EXPRESSÃO são três momentos, digamos assim, do nascimento de uma
norma. Para quem preferir, pode-se dizer também que esta é a via pela qual se
estabelece a norma a ser aplicada.
O sentido (a norma), em geral, é estabelecido pelo intérprete no
momento da aplicação. Nessa esteira, os realistas americanos (Holmes) diziam
que "o Direito é o que os juízes dizem que ele é", exprimindo a ideia
de maneira contundente. E, na verdade, então, tem-se:
Ato legislativo ->
expressão lingüística -> sentido 1 ou sentido 2 ou sentido n. (dependendo do órgão julgador)[2].
A norma passa a ser o produto de dois atos, então: o de legislar e
o de interpretar. Mas, como fica evidente, quem dá a palavra final
sobre a norma, quem de fato a estabelece, é o intérprete. Para um sistema
jurídico como o norte-americano, orientado diretamente pelo princípio da
supremacia judicial, essa maneira de ver as coisas é perfeitamente coerente. Para
o sistema jurídico europeu continental, fundado no princípio da supremacia
parlamentar, não se pode dizer o mesmo.
Por outro lado, é preciso atentar para o fato de que o sentido da expressão linguística, muitas
vezes, descola-se da vontade do legislador. Esta é uma
forma de dizer que, na prática, não corresponde à vontade daquele
que praticou o ato legislativo. Ou seja, pode ou não ter relação com a
vontade do legislador. Se for permitido dizer, para simplificar o
raciocínio, a "vontade" do intérprete é a que, afinal,
prevalece. Canotilho e os demais neo-constitucionalistas falam muito em
"mobilidade" para exprimir esse mecanismo normativo pelo qual o mesmo
texto vai assumindo diferentes sentidos (atualizando-se) pela mão dos
intérpretes. Por isso, a hermenêutica teve de virar-se para estabelecer regras
de interpretação que garantissem, minimamente, a atuação coerente do intérprete,
para evitar arbitrariedades e
promover a integridade sistêmica (Dworkin e sua ideia de integrity). Günther recorre à
ideia de "lógica de aplicação", assim como Alexy e Luhmann. Para
evitar as arbitrariedades, torna-se fundamental regrar os mecanismos de
aplicação contextual da norma.
Nesse cenário, exposto de maneira bastante simplificada, com o qual o mundo
jurídico está habituado, fica evidente que a norma surge "no
momento da aplicação" pelas mãos de um "intérprete", em geral um
juiz, mas vincula-se a uma "expressão linguística de base” que é
interpretada segundo diretrizes aceitas pelo ordenamento (salvo, é claro, no
caso dos vazios legais).
Pergunta-se, então: a norma tecnológica encaixa-se nesse figurino?
Sem dúvida, parece que sim. Daí justificar-se classificá-la como norma, estando
presente nela também o atributo central da norma jurídica (imperatividade).
No entanto, há muitos atributos especiais que justificam sua classificação
como categoria jurídica nova e específica. Um tipo novo de norma
jurídica.
Veja-se um primeiro caso, considerando apenas a dimensão temporal.
Atente-se para o momento da interpretação da expressão linguística
(texto legal): em geral, esse movimento é feito no momento da aplicação da
norma. Ou seja, o aplicador interpreta o texto, extrai seu sentido (a norma)
imediatamente antes da aplicação e, então, com aquele sentido (que é a norma),
deslinda o caso (julga). Para os teóricos, esse é um momento cuja análise
assume contornos riquíssimos, porque há uma atuação da situação sobre o
intérprete (reflexividade) que impacta diretamente os contornos que a norma
assume. Para Günther, a “adequação da norma" para solucionar com
justiça o caso concreto em exame exprime-se num índice de
"situacionalidade" ao qual se vinculam diretamente a imparcialidade e
a justiça da decisão.
O esquema tradicional, portanto, também pode ser expresso assim:
Ato legislativo ->
expressão lingüística -> definição
contextual do sentido (norma), quando o aplicador leva em conta a expressão lingüística e a
situação concreta que tem para decidir, com todos os seus sinais
característicos relevantes.
Ora, a norma
tecnológica é claramente "pré-interpretada" (pré-apurada), no sentido
de ser previamente estabelecida para solucionar situações concretas que
ocorrerão no futuro e que não terão a oportunidade de "atuar
reflexivamente" para conformar a aplicação. Sinais relevantes não
previstos serão totalmente desconsiderados.
O intérprete atua, é verdade, para fixar a norma tecnológica. Mas
essa atuação não é feita diante de uma situação concreta e suas
"perístases", diante de seus sinais característicos. Muito pelo contrário.
Ele pode até fazer um exercício de antevisão mais profundo que o do
legislador, trabalhando num nível de especificação semântica mais rico e
detalhado. Mas, definitivamente, a norma é definida sem aquele contato do
intérprete com a real situação a ser deslindada. Os sinais característicos da
situação são estabelecidos num nível de abstração (e de antevisão) quase tão
longínquo quanto o do legislador. Lembre-se, aqui, de Hart e sua ideia de
"textura aberta", com a qual o legislador parece reconhecer a
necessidade da aplicação contextual e impregna os textos normativos com termos
que abrem o caminho, amplamente, para a atuação do intérprete.
Esse sentido do texto legal (a norma), estabelecido para deslindar
as situações jurídicas previstas (imaginadas como de ocorrência possível no
futuro) e que ganha expressão
tecnológica, incorporando-se a um sistema eletrônico, é a norma tecnológica.
Veja-se que, partindo da expressão lingüística em linguagem natural, apura-se
um sentido que é escrito em linguagem tecnológica (algoritmo) - linguagem
própria para ser compreendida por uma máquina - e vai determinar o
comportamento do sistema eletrônico quando se apresentar exatamente uma
daquelas situações antevistas pelo intérprete.
Define-se, hermeneuticamente, um sentido (norma) que se transforma
num ente “autoaplicador”, num programa de computador que, automaticamente, vai
se autoaplicar.
Desse simples entendimento surge uma miríade de conseqüências teóricas
e práticas cujo exame ocupará alguns dos próximos posts.
[1]
Esta noção da “norma jurídica” o criador da ciência jurídica manteve viva até
morrer. Ela se encontra na Teoria Pura e reaparece, com muita força e em muitos
momentos, na Teoria Geral da Normas, sua obra póstuma. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5.ed. São
Paulo:Martins Fontes, 1996. 427p. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre:Fabris, 1986. 509p.
[2]
Os mecanismos de uniformização da jurisprudência visam reduzir a diversidade de
sentidos e as súmulas vinculantes os restringem a um único e inescapável.
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