Pergunta que não cala:
E
se esse cliente tivesse ido a um advogado?
Como ele resolveria o problema?
Este post é o terceiro de uma série que tenho
denominado de “o sentido da lei que vai ao computador”.
No segundo
post, examinei a questão da aplicação da norma tecnológica,
tentando chamar a atenção para o fato de que daí emerge um elemento ôntico[1]
relevante para a diferenciação da norma tecnológica. Inclusive com uma ilustração onde inverti a
direção da seta que liga norma e fatos para o caso da norma
tecnológica. Numa aplicação típica de
norma jurídica, os fatos se refletem sobre a norma legal no esforço de apuração
do sentido da lei que será aplicado (discurso de adequação). O aplicador, à luz
dos fatos e sob consideração de todas as características relevantes da
situação, ajusta a norma para que o resultado seja compatível com os fins do
Direito. No post, tentei demonstrar que a norma tecnológica, que é um agente
automatizado, tem o poder de inverter esse movimento de reflexão (no sentido de
refletir-se sobre, influenciar...) e, muitas vezes, diante dela e sua
inflexibilidade, os fatos precisam ser ajustados, até mesmo para obter acesso e
giro do sistema processual.
Muitas vezes é preciso trabalhar os fatos para ganhar acesso ao sistema processual. |
Poucos dias após a publicação
do post, surgiu um exemplo vivo na
Vara do Trabalho de Pontes de Lacerda, que utiliza o PJe-JT, conforme notícia
amplamente divulgada pelo TRT da 23ª Região. A notícia parece comprovar o afirmado no segundo post da série. Veja-se muito sumariamente:
1. Um empregado foi à
vara sem advogado; levou o termo de rescisão homologado, demonstrando dispensa
sem justa causa; alegou que o Sine se negou a inscrevê-lo para receber
seguro-desemprego porque não tinha comprovante de escolaridade (exigência da
lei 12.513/11); tempos depois, quando finalmente logrou obter o aludido
comprovante e retornou ao órgão, o prazo de inscrição já havia vencido e o interessado teve o pedido negado novamente; pedia, agora, na Justiça, o acesso àquele benefício legal. A secretaria da vara distribuiu a ação com
pedido de alvará judicial que determinasse a habilitação no seguro-desemprego.
2. A notícia continua: “ O
atermador assentou no termo, que precisou da orientação do gabinete do juiz auxiliar da Presidência do Tribunal,
que coordena o PJe-JT, uma vez que o sistema não prevê ações de jurisdição
voluntária (quando não existe parte ré no feito). A orientação foi no sentido de colocar a Caixa Econômica Federal – CEF,
no pólo passivo, apenas para viabilizar a distribuição.” [sem grifos no
original]
3. A juíza que recebeu a
ação, diz a notícia, “ [...] primeiramente
se referiu à questão da colocação da CEF no pólo passivo da ação e, julgando-a
parte ilegítima, extinguiu o processo com relação a ela sem adentrar no mérito.”
Depois, “ [...] deferiu o pedido
determinando que a própria sentença servisse de alvará judicial [...] “. (Processo 0002067-23.2013.5.23.0096)
Não vêm ao caso, aqui, os
aspectos jurídicos envolvidos. Interessa sim verificar que, diante do sistema
processual eletrônico (o PJe-JT), as normas postas diante dos operadores - e que são
processuais por inúmeras razões, além do simples fato de se postarem como
óbices ao exercício do direito público de ação - exigiram que os fatos
ganhassem contornos absolutamente inusitados. Destaco apenas duas coisas,
embora eu tenha pensado em mais de uma dezena delas:
1) A CEF ganhou, sem saber, transitório status de ré e serviu para “iludir” o sistema processual e
2) A inépcia da inicial, que
levaria à extinção do processo sem julgamento de mérito (parte única
manifestamente ilegítima conforme reconhecido pela sentença), não impediu se
expedisse sentença com força executiva.
Ou seja, para ter seu pleito
levado à mesa de um juiz (devido processo legal - direito fundamental), o
trabalhador dependeu do esforço concertado de inumeráveis servidores e
magistrados que, sabedores dos meandros do sistema processual eletrônico,
puderam dar aos fatos a forma necessária
para que o sistema “rodasse” (se dispusesse a dar tratamento à pretensão).
A rigidez da norma tecnológica influenciou a descrição dos fatos, sem dúvida.
Pergunta que não cala: e se
esse cliente tivesse ido a um advogado? Como ele resolveria o problema?
[1]
No sentido heideggeriano de referência ao “da-sein”. Ôntico não é tomado como
sinônimo de ontológico.
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