quarta-feira, 17 de abril de 2013

Norma tecnológica (eNorma): o sentido da lei que vai ao computador (II)


Em meu último post, parti da caracterização kelseniana da norma como o "sentido de um ato de vontade do legislador", para evidenciar que a norma jurídica, em geral,  é o produto da ação, primeiro, do legislador e, depois, do intérprete:

Ato legislativo de manifestação de vontade-> expressão linguística -> sentido da expressão linguística (norma) -> aplicação.  O intérprete parte do texto legal, apura a norma e a aplica.

No caso da norma tecnológica (eNorma), o intérprete não a aplica. Ele define o sentido da expressão linguística - a norma - e orienta a transformação desta norma num "ente autoaplicador", num agente automatizado, numa "norma viva".  Para isso, a norma precisa ganhar expressão tecnológica para ser entendida pelo computador e ser executada.  Ela é transformada num programa, num software.

A expressão linguística da norma tecnológica, portanto, não é feita com a linguagem natural humana, mas numa linguagem técnica.  E, uma vez escrita em tal linguagem, não é mais passível de interpretação. Ela é uma interpretação "viva" da lei, que se autoaplica. Entre essa expressão "escrita tecnologicamente" da norma e sua aplicação não há mais qualquer intervenção humana (interpretação). Nesse sentido, ela é uma interpretação "terminal", final, fixa e imóvel (salvo se for reescrita), traduzida numa estrutura dura e insensível, imersa num sistema eletrônico.



Fica evidente, então,  que, no esquema tradicional "ato legislativo -> expressão linguística -> fixação de sentido", há uma abertura permanente para a mobilidade. O juiz, a câmara, a realidade, a situação, tudo impacta a fixação do sentido (norma) que  será aplicado.  O hermeneuta atua como um flexibilizador/ajustador do sentido (ou seja, da norma) para promover, mediante adequações, tanto a mobilidade do ordenamento jurídico para ajustá-lo à evolução da realidade,  como para promover a contextualização (situacionalidade) necessária para dirimir com justiça a situação concreta.


No caso da norma tecnológica, considerando-se que ela já é "um sentido" que se vai autoaplicar (inserido no sistema para se autoaplicar), não há essa mobilidade. Ou, ao menos, não há com o mesmo alcance.  Qualquer alteração deverá passar por uma "reescritura" do sentido no âmbito do sistema, no programa, algo sempre muito delicado e difícil. Uma coisa é fazer considerações para o magistrado e chamar atenção para os detalhes que exigem, no caso, um tratamento especial. Outra, muito diferente, é batalhar pela reescritura de um programa de computador porque determinada hipótese (e todos os dias e em todos os casos temos novas hipóteses) não foi prevista e programada. 


Quando se pensa apenas no processo - detalhes processuais -, tende-se a minorar as consequências dessa constatação, apesar do erro dessa minoração.  Mas quando se considera o avanço para áreas mais sensíveis, em que se deferem ou indeferem direitos materiais - como ocorre com os sistemas de gestão de benefícios que Danielle Keats Citron estudou no Estados Unidos - percebe-se o alcance funesto dessa nuance. 

Num enfoque amplo, portanto, e não reducionista, vê-se que há relevantes decorrências dessa constatação. O Direito está preparado, há séculos, com procedimentos próprios e inumeráveis mecanismos para promover a aplicação justa da norma. Um intérprete aplicador humano, juridicamente estabelecido e preparado, tinha (digo no passado, porque as coisas estão se transformando rapidamente!) a função primacial de, considerando o ordenamento jurídico e a situação a solver, evitar que resultados incompatíveis com o Direito fossem produzidos. 

A norma tecnológica altera isso tudo. A autoaplicação (aplicação automatizada) considera superficialmente as características da situação. E as considera apenas e até os limites postos no programa, ou seja, até onde foram a imaginação do intérprete e do programador no exercício de antevisão (previsão) típica da atividade tecnológica.  

O caso concreto é confrontado com a estrutura programática, estática,  posta no sistema. A situação fica pior quando se tende a buscar um modo de apresentar o caso (conformar!) segundo as exigências do programa. 

Há, no caso, uma inversão completa  do sentido da ação reflexa que caracteriza a aplicação jurídico-humana da norma. Num discurso de adequação típico, o juiz trabalha a norma, dando-lhe feições próprias para bem resolver a situação que está posta para solução. 

Diante de um programa de computador, ou seja, de uma norma fria e anódina que se autoaplica, ocorre exatamente o inverso. Como a norma não é passível de ajuste para bem contemplar a situação e todos os seus sinais característicos, busca-se uma descrição dos fatos que se adapte à configuração algorítmica da norma. A norma reflete-se sobre a descrição dos fatos  e não os fatos sobre a norma, como recomendam os hermeneutas para deslindar com imparcialidade e justiça um caso concreto.

E não há alternativa. Ou se apresentam as coisas segundo as exigências da norma autoaplicadora, ou não se obtém a execução do programa. 



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