Em
meu último post, parti
da caracterização kelseniana da norma como o "sentido de um ato de vontade
do legislador", para evidenciar que a norma jurídica, em geral, é o
produto da ação, primeiro, do legislador e, depois, do intérprete:
Ato legislativo de manifestação de vontade-> expressão linguística -> sentido da expressão linguística (norma) -> aplicação. O intérprete parte do texto legal, apura a norma e a aplica.
No caso da norma tecnológica (eNorma), o intérprete não a aplica. Ele define o sentido da expressão linguística - a norma - e orienta a transformação desta norma num "ente autoaplicador", num agente automatizado, numa "norma viva". Para isso, a norma precisa ganhar expressão tecnológica para ser entendida pelo computador e ser executada. Ela é transformada num programa, num software.
A expressão
linguística da norma tecnológica, portanto, não é feita com a linguagem
natural humana, mas numa linguagem técnica. E, uma vez escrita em tal
linguagem, não é mais passível de interpretação. Ela é uma interpretação
"viva" da lei, que se autoaplica. Entre essa expressão "escrita
tecnologicamente" da norma e sua aplicação não há mais qualquer
intervenção humana (interpretação). Nesse sentido, ela é uma interpretação "terminal",
final, fixa e imóvel (salvo se for reescrita), traduzida numa estrutura dura e
insensível, imersa num sistema eletrônico.
Fica
evidente, então, que, no esquema tradicional "ato legislativo ->
expressão linguística -> fixação de sentido", há uma abertura
permanente para a mobilidade. O juiz, a câmara, a realidade, a situação, tudo
impacta a fixação do sentido (norma) que será aplicado. O
hermeneuta atua como um flexibilizador/ajustador do sentido (ou seja, da norma)
para promover, mediante adequações, tanto a mobilidade do ordenamento jurídico
para ajustá-lo à evolução da realidade, como para promover a
contextualização (situacionalidade) necessária para dirimir com justiça a
situação concreta.
No caso da norma
tecnológica, considerando-se que ela já é "um sentido" que se vai
autoaplicar (inserido no sistema para se autoaplicar), não há essa mobilidade.
Ou, ao menos, não há com o mesmo alcance. Qualquer alteração deverá
passar por uma "reescritura" do sentido no âmbito do sistema, no
programa, algo sempre muito delicado e difícil. Uma coisa é fazer considerações
para o magistrado e chamar atenção para os detalhes que exigem, no caso, um
tratamento especial. Outra, muito diferente, é batalhar pela reescritura de um
programa de computador porque determinada hipótese (e todos os dias e em todos os
casos temos novas hipóteses) não foi prevista e programada.
Quando se pensa apenas no processo - detalhes processuais -, tende-se a minorar as consequências dessa constatação, apesar do erro dessa minoração. Mas quando se considera o avanço para áreas mais sensíveis, em que se deferem ou indeferem direitos materiais - como ocorre com os sistemas de gestão de benefícios que Danielle Keats Citron estudou no Estados Unidos - percebe-se o alcance funesto dessa nuance.
Num enfoque amplo,
portanto, e não reducionista, vê-se que há relevantes decorrências dessa
constatação. O Direito está preparado, há séculos, com procedimentos próprios e
inumeráveis mecanismos para promover a aplicação justa da norma. Um intérprete
aplicador humano, juridicamente estabelecido e preparado, tinha (digo no
passado, porque as coisas estão se transformando rapidamente!) a função
primacial de, considerando o ordenamento jurídico e a situação a solver, evitar
que resultados incompatíveis com o Direito fossem produzidos.
A norma tecnológica altera isso tudo. A autoaplicação (aplicação automatizada) considera superficialmente as características da situação. E as considera apenas e até os limites postos no programa, ou seja, até onde foram a imaginação do intérprete e do programador no exercício de antevisão (previsão) típica da atividade tecnológica.
O caso concreto é confrontado com a estrutura programática, estática, posta no sistema. A situação fica pior quando se tende a buscar um modo de apresentar o caso (conformar!) segundo as exigências do programa.
Há, no caso, uma inversão completa do sentido da ação reflexa que caracteriza a aplicação jurídico-humana da norma. Num discurso de adequação típico, o juiz trabalha a norma, dando-lhe feições próprias para bem resolver a situação que está posta para solução.
Diante de um programa de computador, ou seja, de uma norma fria e anódina que se autoaplica, ocorre exatamente o inverso. Como a norma não é passível de ajuste para bem contemplar a situação e todos os seus sinais característicos, busca-se uma descrição dos fatos que se adapte à configuração algorítmica da norma. A norma reflete-se sobre a descrição dos fatos e não os fatos sobre a norma, como recomendam os hermeneutas para deslindar com imparcialidade e justiça um caso concreto.
E não há alternativa. Ou se apresentam as coisas segundo as exigências da norma autoaplicadora, ou não se obtém a execução do programa.
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