quinta-feira, 2 de maio de 2013

Contra a ideia de norma tecnológica (eNorma)


Alguns estudiosos têm negado a possibilidade de dar à norma tecnológica o status de norma jurídica. Segundo essa linha teórica, o código imerso num sistema não é Direito, não pode ter o atributo da normatividade, situando-se no “além do Direito”, no entorno do sistema jurídico, como diria Luhmann, no espaço de complexidade e contingência  que o sistema vê apenas com seu sentir heteroreferencial. 

Refletindo a respeito, não pude deixar de me remeter ao maravilhoso capítulo 8 do Curso de Direito Constitucional do prof. Paulo Bonavides[1], quando o respeitado mestre leva o leitor, numa  viagem especial, das posições da Velha Hermenêutica, que negavam normatividade aos princípios, à exuberância do papel dos princípios alcançada no pós-positivismo, passando, num caminho rico de tensões e disputas de verdadeiros titãs teóricos, por Del Vecchio, Boulanger, Betti, Larenz, Esser, Crisafulli, Dworkin, Alexy e Bobbio. 

Analogicamente, e abstraindo de lá, é claro, apenas a resistência ao avanço teórico, penso um pouco diferente em relação à visão do code como Direito. Defendo não só a  aceitação da possibilidade da existência da  norma tecnológica como, ainda mais,  entendo ser imprescindível esse passo para um avanço teórico necessário no atual momento da realidade mundial.

Fechar-se a essa possibilidade, em termos dogmáticos, cerceia o esforço teórico exatamente onde ele está mais deficiente, diante da nova realidade jurídico-virtual em que nos enredamos cada vez mais. Do mesmo modo, considerá-lo Direito, acriticamente, refreia o pensar num ponto onde as lucubrações mais se fazem necessárias. As duas hipóteses - negar a possibilidade ou considerá-lo desde logo Direito - equivalem-se em termos de construção científica.

Ao começar a escrever a respeito, não pretendi redescobrir o que Lessig[2], e principalmente CITRON[3] (que é muito mais incisiva, porque baseia a pesquisa num sistema automático de concessão de benefícios e que cito na abertura de meu artigo), já haviam antevisto. Entendo que somente  aceitando o software como norma (quando tem conteúdo jurídico) é possível submetê-lo aos mecanismos jurídicos especializados de validação da produção  normativa.

Além disso, não ver normatividade no código, na atualidade do sistema processual brasileiro, considerando-se que, sob luzes sistêmicas, normatividade e positividade são afins (Luhmann[4], quando trata de clausura operacional, em qualquer das várias obras), parece-me incongruente.

Penso, portanto,  que a TGP vai crescer e ganhar possibilidade de pensar o Direito com tecnologia de uma maneira mais consistente a partir do momento em que acolher a norma tecnológica em seu seio. Jogá-la para o entorno significa que será preciso explicar/teorizar o Direito com tecnologia sem tomá-la em consideração e isso pode ser, no mínimo,  muito problemático. Como o sistema se manifesta na operação, haverá claramente giros recursivos de comunicação - dentro do subsistema processual - que carecerão de justificação do enlace operacional característico e ininterrupto dos sistemas autopoiéticos. 

Em meu último post,  eu tinha me referido exatamente à necessidade dessa ampliação de visão da TGP para, sem abrir mão de seu papel de sistematização, recepcionar as muitas e variadas contribuições que estão vindo de outras áreas, inclusive da tecnológica. 

É importante lembrar que ver o software (instruções técnicas de conteúdo jurídico) como mero "enunciado" não corresponde à natureza dessa nova categoria científica.   O software é norma autoaplicadora,  e esta - a autoaplicação - talvez seja o mais contundente diferencial dessa nova categoria de norma.



[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo:Malheiros, 2000. p. 228 e seguintes.
[2] LESSIG, Lawrence. CODE. Disponível em: http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf. Acesso em:  13 nov. 2011.
[3] CITRON, Danielle Keats. Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis, v.85, p. 1249, 2008.
[4] Exemplificativamente, LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das recht der gesellschaft).  Formatação eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: http://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html. Acesso em: 10 nov. 2011.


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