Alguns
estudiosos têm negado a possibilidade de dar à norma tecnológica o status de norma jurídica. Segundo essa linha
teórica, o código imerso num sistema não é Direito, não pode ter o atributo da normatividade, situando-se
no “além do Direito”, no entorno do sistema jurídico, como diria Luhmann, no
espaço de complexidade e contingência
que o sistema vê apenas com seu sentir heteroreferencial.
Refletindo a respeito, não
pude deixar de me remeter ao maravilhoso capítulo 8 do Curso de Direito
Constitucional do prof. Paulo Bonavides[1],
quando o respeitado mestre leva o leitor, numa viagem especial, das posições da Velha
Hermenêutica, que negavam normatividade aos princípios, à exuberância do papel
dos princípios alcançada no pós-positivismo, passando, num caminho rico de
tensões e disputas de verdadeiros titãs teóricos, por Del Vecchio, Boulanger,
Betti, Larenz, Esser, Crisafulli, Dworkin, Alexy e Bobbio.
Analogicamente, e abstraindo de lá, é claro, apenas a resistência ao avanço teórico, penso um pouco diferente em relação à visão do
code como Direito. Defendo não só a aceitação da possibilidade da existência da norma
tecnológica como, ainda mais,
entendo ser imprescindível esse passo para um avanço teórico necessário
no atual momento da realidade mundial.
Fechar-se a essa possibilidade, em termos dogmáticos, cerceia
o esforço teórico exatamente onde ele está mais deficiente, diante da nova
realidade jurídico-virtual em que nos enredamos cada vez mais. Do mesmo modo,
considerá-lo Direito, acriticamente, refreia o pensar num ponto onde as
lucubrações mais se fazem necessárias. As duas hipóteses - negar a
possibilidade ou considerá-lo desde logo Direito - equivalem-se em termos de
construção científica.
Ao começar a escrever a respeito, não pretendi
redescobrir o que Lessig[2],
e principalmente CITRON[3]
(que é muito mais incisiva, porque baseia a pesquisa num sistema automático de
concessão de benefícios e que cito na abertura de meu artigo), já haviam
antevisto. Entendo que somente aceitando o software como norma (quando
tem conteúdo jurídico) é possível submetê-lo aos mecanismos jurídicos
especializados de validação da produção normativa.
Além disso, não ver normatividade no código,
na atualidade do sistema processual brasileiro, considerando-se que, sob luzes
sistêmicas, normatividade e positividade são afins (Luhmann[4],
quando trata de clausura operacional, em qualquer das várias obras), parece-me
incongruente.
Penso, portanto, que a
TGP vai crescer e ganhar possibilidade de pensar o Direito com tecnologia de
uma maneira mais consistente a partir do momento em que acolher a norma
tecnológica em seu seio. Jogá-la para o entorno significa que será preciso
explicar/teorizar o Direito com tecnologia sem tomá-la em consideração e isso pode ser, no mínimo, muito problemático. Como o sistema se manifesta na operação, haverá
claramente giros recursivos de comunicação - dentro do subsistema processual - que
carecerão de justificação do enlace operacional característico e ininterrupto
dos sistemas autopoiéticos.
Em meu último post, eu tinha me
referido exatamente à necessidade dessa ampliação de visão da TGP para, sem abrir
mão de seu papel de sistematização, recepcionar as muitas e variadas
contribuições que estão vindo de outras áreas, inclusive da tecnológica.
É importante lembrar que ver o software (instruções técnicas de
conteúdo jurídico) como mero "enunciado" não corresponde à natureza
dessa nova categoria científica. O
software é norma autoaplicadora, e esta - a autoaplicação - talvez seja o mais contundente
diferencial dessa nova categoria de norma.
[1]
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito
Constitucional. 9.ed. São Paulo:Malheiros, 2000. p. 228 e seguintes.
[2]
LESSIG, Lawrence. CODE. Disponível em: http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf.
Acesso em: 13 nov. 2011.
[3] CITRON, Danielle Keats.
Technological due process.Washington University Law Review. St. Louis , v.85, p. 1249, 2008.
[4] Exemplificativamente, LUHMANN,
Niklas. El derecho de la sociedad. (Das
recht der gesellschaft). Formatação
eletrônica. Versão 5.0, de 13/01/2003. Disponível em: http://forodelderecho.blogcindario.com/2008/04/el-derecho-de-la-sociedad-niklas.html.
Acesso em: 10 nov. 2011.
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