Será que o avanço tecnológico vai propiciar, em alguma
medida, a concretização do
antigo e malfadado sonho
do “juiz boca da lei”?
Se automatizar é, por definição, transferir uma atividade humana
para um “agente automatizado”, então automatizar o processo é, sem dúvida,
colocar o computador, em muitos e variados momentos, a aplicar a lei (tomada em
sentido amplo). Do “logar-se” ao sistema eletrônico até o controle de prazos,
passando pelas inúmeras exigências postas pelo sistema para a prática dos atos
processuais, vê-se que interlocutores humanos estão sendo substituídos por
agentes automatizados. Há, mesmo, quem reacenda as ideias de automatizar o processo
não apenas no âmbito formal, como tem ocorrido até agora nos sistemas
processuais, mas no mérito[1].
Alguns tendem a postar-se contra esse movimento de automação como se fosse
imanentemente ruim automatizar os atos. Não parece o caso. Principalmente no processo, há muito espaço
onde o computador pode dar contribuições ímpares.
Os compreensivistas sempre se preocuparam com o fator
incontrolável posto entre a proposição linguística (a lei) que sai do
legislador e o sentido em que ela é tomada para aplicação[2].
Segundo a visão dos positivistas, e mais ainda para os que
cultivam visões instrumentalistas do Direito, esse fator incontrolável no
trajeto de especificação da norma
jurídica tornou-se um pé-de-aquiles do Direito. É inócuo instituir um bom procedimento, por
exemplo, dizem eles, se, no final, tudo desanda nas
mãos manejadas monologicamente pelo intérprete. As visões da sentença como
vontade da lei, do intérprete ou de ambos transitam por tais pensares. E o
esvaziamento do silogismo, como garantia lógica de decisão calcada nos fatos,
ficou reconhecido. Nem mesmo os sonhos habermasianos de verdade a posteriori, como construção
coletiva no âmbito do processo, parecem vencer essa irremediável (e inexorável)
tendência para a incertidumbre jurídica.
O juiz “boca da lei”[3]
sempre foi tido como um sonho para ser perpetuamente sonhado e jamais
realizado. Felizmente, parece-me.
Na tentativa “do dispor e fazer acontecer” do
legislador, a Escola da Exegese preconizava caminhos rígidos de aplicação
da norma. Tudo, sempre, para que o
intérprete não ficasse à vontade para impor, pela via espúria de uma
interpretação de conveniência, sua vontade. Afinal, dizem alguns, interpretar é
perverter a lei (Gadamer?).
Se se faz uma leitura superficial de Legitimação pelo procedimento, Luhmann[4]
parece entregar os pontos ao denunciar que o procedimento legitima tudo. E,
temeroso, preconiza ao menos o estabelecimento
de mecanismos para minorar a influência dos papéis externos do julgador.
Alexy e Günther[5]
sugerem, claramente, a necessidade de uma lógica de aplicação.
E esses, mesmo preocupados com os eventuais desvirtuamentos, tentam
demonstrar que, sem a atuação do intérprete, o Direito tem de abrir mão
de sua pretensão de Justiça. Não é possível um Direito que não contextualize a
aplicação da força, que não se tempere diante dos fatos e onde o discurso de
adequação (construção maior do intérprete) seja expurgado. Sem adequação não há
justiça (?!?) na decisão.
De qualquer jeito, e diante desses vários exemplos, desde Napoleão e seus desejados "juízes
bocas da lei" até os pós-positivistas, dos tempos da Nova Hermenêutica,
sempre houve preocupação com o fenômeno da "interpretação". Ela é parte da dinâmica do sistema jurídico.
Na nova realidade justecnológica em que estamos entrando de
cabeça, este zelo, agora, terá de lidar com a eNorma. Seu manejo exige a
atenção dos juristas porque, como se disse em post anterior,
a eNorma quebra o espaço jurídico de aplicação normativa em dois: uma parte
flexível, em que remanesce a
interpretação e a humanidade, e outra
parte rígida e trivial, a parte da
eNorma, em que prevalece a frieza tecnológica e onde se esfumaça o discurso de
adequação.
Verifique-se que os
tamanhos desses espaços tendem a alterar-se. Ao menos no processo, há ainda uma
preponderância avassaladora dos “espaços humanos”. Mas os espaços de não
flexibilidade estão em expansão. E tais
espaços, plenos de automação, concretizam, de alguma forma, o velho e inalcansável sonho do “juiz boca da
lei”. De alguma forma, é importante dizer, conforme pretendo demonstrar num
próximo post.
A eNorma, pela sua marcante característica da autoaplicação, traz
à luz o “computador boca da lei”. Uma vez programado, o computador, porque não
interpreta, cumpre à risca os comandos dispostos por quem o programou.
Daí a razão pela qual as estipulações das eNormas devem ser
cercadas da maior transparência, do maior zelo e da máxima participação dos
envolvidos. As pessoas devem (i) estar muito bem informadas quanto ao que
significa a automação e sobre os imensos benefícios que pode proporcionar aos
procedimentos de adjudicação do Direito (regra
da automação consciente); (ii) ter canais institucionalizados para
participar da definição das regras que serão objeto de codificação tecnológica
(regra da legitimação) e (iii) poder
assegurar-se de que a função informática em operação corresponde, de fato, às
regras fixadas com sua participação (regra da transparência plena)[6].
[1] Na UFPR,
há um grupo de estudiosos, de inquestionável gabarito, que tem posto atenção nessa ideia.
[2] Conforme
a visão que Kelsen lançou e sustentou durante toda a vida (da Teoria Pura à
Teoria Geral das Normas).
[3] Conforme
a expressão consagrada por Montesquieu la
bouche de la loi.
[4] LUHMANN,
Niklas. Legitimação pelo procedimento.
Trad. de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília:UnB, 1980. 210p.
[5] GÜNTHER,
Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
[6] Conforme
disposto no item 7 de meu artigo de 2012
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