No item 6 de meu artigo(ver página Artigos no menu à direita), aponto a norma tecnológica como sendo " [...] a interpretação
da norma textual, da norma prima facie, escolhida para prevalecer mediante incorporação no algoritmo do sistema processual."
Ou seja, partindo-se da disposição "legislada", apura-se uma interpretação (o sentido do enunciado com força normativa , quer dizer, a norma em sentido kelseniano, ou o objeto da norma(1)) para incrustar no software chamado de sistema processual. Para incorporar-se ao software, ela ganha expressão em linguagem própria (código-fonte).
Eis aí, portanto, a norma tecnológica. Um técnico é capaz de olhá-la e dizer: "ah, de acordo com o que está aqui, se o recurso tiver mais de 50 laudas, será rejeitado." Essa é a expressão "humana", em linguagem natural, da norma tecnológica. Quem sofrerá o impacto da aplicação desta norma? Quem está sujeito à prescrição posta na norma?
Poder-se-ia pensar que ela é uma norma dirigida para o computador, para a máquina, e não para um humano. E, portanto, seria estranho pensá-la como norma jurídica.
Mas, nesse raciocínio, há uma falácia, induzida pela ideia de programa e que é muito comum, no início de carreira, para os próprios programadores.
Uma coisa é o conjunto de comandos dirigidos ao computador para obter determinado comportamento dele (do computador). Na verdade, o código-fonte (onde, em linguagem acessível aos técnicos, são dispostos os comandos para o computador) não é, ainda, as instruções que o computador executa (ou cumpre!). O computador trabalha efetuando operações expressas em linguagem de máquina (código-objeto) que são uma tradução (que o próprio computador faz) da linguagem fonte.
Para o computador, pouco importa o conteúdo prescritivo contido no conjunto de instruções que ele executa, uma a uma. O comportamento dele somente será o almejado pelo "legislador" porque ele fará milhares de operações toscas e simples que foram ordenadas por um humano para produzir aquele resultado. A virtude do computador é executar estritamente aquele conjunto de movimentos, somas, subtrações etc de bits, em sua memória, sem saber do que se trata.
Então, é necessário perceber que é na "ordem de execução das instruções", estabelecida por um humano, que está o conteúdo jurídico-normativo daquele conjunto de instruções técnicas. Ou seja, é no "programa" que está um comando para os humanos. Aquele mesmo conjunto de instruções, executado em outra ordem (postas noutra disposição!), produzirá um resultado absolutamente diverso. A pior coisa para um programador é cometer aquilo que eles,os programadores, chamam de "erro de lógica": um erro na estipulação da "ordem de execução" das instruções. O computador as executará, burramente, e o resultado não será o esperado (exemplo: mesmo com mais de 50 laudas, o recurso é recebido, mas não deveria ser!).
Um programa é o que Krammes (falando de workflow e inspirado em Cruz e outros autores) denomina de "agente automatizado". (2)
Quando um servidor devolve o recurso para o advogado, negando-se a recebê-lo porque há excessivas laudas, não se diz que o "limite de laudas" foi estabelecido para o servidor, mas para o advogado. É ele que deve ajustar-se à norma limitadora para ver seu recurso processado. O servidor apenas "aplica a sanção". Assim como o juiz aplica a sanção a quem ofendeu. (Fujamos, aqui, da visão kelseniana de norma como autorização ao aplicador da sanção! Não há utilidade em considerá-la neste momento.).
Ora, num cenário de softwarização do processo, uma imensidão de atividades é automatizada. Isso significa preparar programas para substituir os humanos. O advogado de nosso exemplo não vai interagir mais com o servidor, mas sim com um "agente automatizado", com um programa. Na verdade, vai interagir direto com a norma tecnológica que se autoaplica (aplica o conteúdo prescritivo contido nela mesma: ver, a respeito, minha outra postagem sobre Luhmann, autorreferência, clausura de operação e autopoiese).
O tal "agente automatizado" contém, em sua estrutura, a versão normativa adotada para deslindar aquela situação. Ela será aplicada sempre e invariavelmente (se A, então B), sem exceção.
Ótimo? Num primeiro olhar, parece que sim. Mas a simplicidade do exemplo utilizado não deve escamotear a extensão do fenômeno. Fala-se, com insistência, em automatizar decisões, ou seja, ir além das questões formais (hoje muito impactadas) e invadir o mérito. Portanto, é preciso ir mais fundo nessas considerações, pois mesmo no âmbito formal há questões e questões.
Algumas coisas saltam aos olhos:
a) entre a lei e a versão interpretada que será aplicada sempre e invariavelmente, porque cristalizada no programa, "alguém" estabeleceu o que deveria ser transposto para o programa para a tal aplicação invariável e persistente; muitas vezes, nesse passo, há mesmo a necessidade de integração; o "alguém" está legitimado para fazer esse exercício de apuração de sentido?
b) no caso, perde-se o caráter deôntico típico da aplicação de normas jurídicas (se A, talvez B, quem sabe C, ou, dependendo, nada!); salta-se, no âmbito do "dever ser", para espaços ocupados totalmente e apenas por "ser";
c) para Günther (3), a contextualização é condição de imparcialidade; num programa, não há contextualização, salvo se se admitir que uma "pré-visualização" de situações possíveis supre esse requisito; mas essa pré-visão das situações já é feita pelo próprio legislador; a contextualização é típica de um momento de aplicação da norma (discurso de adequação) e de consideração de todas as perístases relevantes da situação;
d) a norma tecnológica é dotada de um absoluto "teor vinculante";
e) sem dúvida, há um deslocamento do núcleo decisório de muitas situações processuais;
f) a interpretação da norma prima facie desloca-se no tempo (na linha de ordem cronológica dos atos); ela passa a preceder, longinquamente, o momento de aplicação da norma.
Enfim, essas e múltiplas outras questões são suscitadas pela nova categoria científica do Direito: a norma tecnológica.
(1) KELSEN, Hans. Teoria
geral das normas. Tradução de José
Florentino Duarte. Porto Alegre:Fabris,
1986. p. 113: "objeto de uma norma é aquilo que está prescrito numa norma, fixado como devido [...] ".
(2) KRAMMES, Alexandre Golin. Workflow em processos judiciais eletrônicos. São Paulo:LTr, 2010. p. 47.
(3) GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na
moral: justificação e aplicação. São
Paulo:Landy Editora, 2004. 423p.
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