A carga naturalmente interdisciplinar desse novo ente da ciência jurídica - a norma tecnológica - é um desafio. Falar da norma tecnológica significa transpor barreiras, nas duas direções: do jurídico para o tecnológico, do tecnológico para o jurídico. E aí está um desafio muito peculiar: teóricos de ambos os lados devem entregar-se a teorizações em âmbitos nos quais não se sentem muito à vontade.
Contemplar a norma tecnológica, na especificidade que a caracteriza como um novo ente científico, demanda um caminhar no sentido contrário ao proposto por Godofredo Telles Jr. (1) para detectar a essência da norma jurídica, quando deságua no entendimento, de fortíssimo teor kelseniano, ainda, de que os caracteres essenciais da norma jurídica são a "imperatividade e o autorizamento". Nesse terreno, os juristas nadam de braçada e os tecnólogos costumam penar. A contrafaticidade, que caracteriza a norma jurídica e que torna o jurídico tão peculiar, é um desafio quase incompreensível para o logicismo formalista dos tecnólogos e de sua ciência.
Falando para os tecnólogos, pode-se traduzir o esforço de Godofredo Telles numa linguagem da programação orientada por objetos, embora tudo isso, no mundo deles, seja quase banal. Banal, quero dizer, no sentido do que ele queria descobrir.
Colocando-se as coisas em termos de classe/objeto (linguagem muito atual dos tecnólogos e da programação orientada por objetos), o que o filósofo Godofredo Telles Jr. fez, com grande esforço teórico, foi chamar a função que indica a classe abstrata (abstract class) de que se partiu, tecnologicamente, para criar, por herança, a classe estendida (extended class). Os juristas entenderam? Muitos tenho certeza de que não. Aliás, os juristas ficariam fascinados com o embasamento teórico-filosófico do instrumental dos tecnólogos.
Assim como os tecnólogos sabem que a classe abstrata não pode ser instanciada - não pode ter vida real como objeto (esse real é no mundo virtual, num programa ou software!) - Godofredo Telles sabia que, embora a pura essência da norma jurídica estivesse presente em todas as normas reais existentes, ela não podia ter existência em sua formulação pura, sem que fosse estendida. Ou seja, também no Direito, a classe abstrata não pode ser instanciada. Somente uma classe estendida - uma espécie normativa específica como princípio (que Godofredo Telles ainda não contempla adequadamente), regra ... - pode existir efetivamente. Agora, temos uma espécie de norma nova que somente se explica com o amálgama de saberes desses dois mundos.
A norma jurídica é um ente jurídico-tecnológico - e os tecnólogos precisam entender o que significa isso, ou seja, o que significa pôr em funcionamento um comando tecnológico que tem a força imperativa do jurídico - e os juristas, por seu turno, precisam entender o que significa dar poder jurídico a um ente normativo de características tecnológicas, destituído de tantas marcas peculiares do jurídico (caráter contrafático, por exemplo, formação/validez, interpretação, aplicação contextualizada...).
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(1) Pode ser pela via de Conceito de norma jurídica como problema de essência, de DINIZ, Maria Helena. 2 ed. SãoPaulo:Saraiva, 1996. Aliás, esta obra merecerá um post específico pois a autora, nela, faz um exercício interessante e rico, mas exatamente em sentido oposto ao que parece ser preciso fazer para tratar da norma tecnológica (em vez de buscar a essência, buscar o acidental, o diferenciador, o que caracteriza a espécie, não o gênero).
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