-Poderia dar um exemplo?
Como tenho dito, a norma tecnológica (eNorma) é filha da automação e, por isso mesmo, precisa ser olhada como uma nova categoria jurídica. Ela está instalada num sistema eletrônico, seja ele qual for, e se autoaplica. Na verdade, em geral se trata de uma norma existente, textual ou não, de qualquer hierarquia, que é "traduzida" num comando tecnológico e que, quando o sistema opera, repito, se autoaplica.
Embora a experiência do Bacenjud seja riquíssima para explorar inúmeros aspectos do fenômeno jurídico-sistêmico eletrônico (automação, interpenetração, extraoperabilidade/interoperabilidade, clausura operativa, abertura informacional, sistemas abertos e fechados), quero pinçar um aspecto para realçar a norma tecnológica e tentar melhorar sua visibilidade.
Desde o início de operação, o Bacenjud mereceu imensos encômios. Embora a conexão dos sistemas se fizesse mecanicamente, as buscas e apreensões de numerários, nas contas, ganhou automaticidade. O regramento legal-processual, atinente à busca da efetividade do processo executivo, foi "programado" - exprimiu-se em códigos-fontes, ou seja, ganhou sua expressão tecnológica, e passou a integrar - estar incorporado - em algoritmos dos sistemas do Banco Central. Dado o comando e demais informações pelo juiz (disparo mecânico da busca), o sistema percorria suas bases de dados e, satisfeitas as condições programadas, promovia as apreensões.
Pois bem... quem implementou o algoritmo de busca e apreensão, na época (aquele que deu concretude à norma tecnológica, que a programou!), esqueceu de um detalhe e causou muitos problemas, incômodos e, mesmo, prejuízos.
A função foi projetada, escrita e operacionalizada (e funcionou assim por um bom tempo!) para apreender a integralidade dos valores disponíveis nas contas, independentemente dos valores buscados. Mesmo que se buscassem R$10.000,00, por exemplo, todo o valor disponível na conta era tornado indisponível, ainda que lá houvesse R$1.000.000,00.
Alguns princípios básicos do processo e da execução foram ignorados e muitos advogados trabalharam para ajeitar as coisas. A apreensão era legal, sem dúvida, e os anseios gerais de efetividade do processo ganharam uma ferramenta maravilhosa para promovê-la. Mas a expressão da ordem, em termos tecnológicos, avançava as cancelas do legal e do justo. Uma coisa era a lei. Outra, um pouco alterada, para pior, era a sua expressão tecnológica. A norma tecnológica, no instante em que se diferenciou para ganhar expressão tecnológica, o fez de forma distorcida, o que evidencia a pré-interpretação e renova a lição de Kelsen sobre a distinção essencial entre norma e texto legal.
Não podemos esquecer da constatação de Danielle Keats Citron, no estudo sobre as rotinas automatizadas das agências reguladoras norteamericanas: “the computer programmers made new policy by encoding rules that distorted or violated established policy” (citada em meu artigo - ver página "Artigos", no menu à direita: "os programadores de computador estabeleceram nova política codificando regras que distorceram ou violaram política estabelecida").
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